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Antologia reúne ensaios sobre a vida e a obra de Franz Schubert

Compositor de lieder foi conhecido pelas suas noitadas de vinho, música e poesia

Por João Marcos Coelho
Atualização:

Em 1928, a cem anos de distância de sua morte, um personagem tão famoso como Rachmaninov ainda ignorava que Franz Schubert (1797-1828) tivesse composto sonatas, revela o pianista Alfred Brendel num suculento ensaio de 1974 sobre suas últimas sonatas. E agora, a meros dez anos do bicentenário de sua morte, ainda o conhecemos pouco e temos dele uma imagem distorcida.  Afinal, quem é Schubert? O príncipe do “lied”, que escreveu 600 canções para voz e piano, o autor preferido de pianistas e cantores amadores, com suas canções para grupos vocais e peças curtas e fáceis? Ou o responsável por nove sinfonias, o mesmo número das de Beethoven, seu ídolo confesso e com o qual jamais teve um encontro tête-à-tête, mas segurou uma das alças de seu caixão no enterro em 1827? 

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Mayrhofer e Schubert numa 'schubertíade' que Von Schwind pintou Foto: Wikimedia Commons

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Schubert, um Compêndio, excelente volume coletivo organizado por Christopher Gibbs, em 17 ensaios de diferentes pesquisadores internacionais, dá as chaves para entendermos este itinerário contraditório da imagem do compositor vienense. O livro de 1997 da série inglesa Cambridge Companion que agora surge em cuidada edição brasileira pela Edusp é leitura obrigatória para os que desejam conhecer melhor “o único entre os compositores de mais alta categoria do século 19 cuja fama em vida esteve significativamente em desacordo com a sua glória póstuma”, escreve Gibbs na introdução. “Um dos objetivos desta coletânea é explorar algumas das razões para essa disparidade”. O livro divide-se em três partes – contexto, música e recepção –, mas de longe os ensaios mais interessantes são os que reconstroem o mundo político, social e econômico de Viena naquelas décadas. Faltava esta moldura para compartilharmos na justa medida a genialidade de Schubert. 

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Uma dessas defasagens de sua imagem é o fato de que ele foi em vida um dos mais executados e publicados em Viena (lieder, canções corais, danças e peças curtas para piano). “Mas sua música instrumental (sinfônica, camerística e para piano) que predomina nas salas de concerto modernas, estúdios de gravação e programas de rádio, era desconhecida fora de Viena”, reflete Gibbs. “Tal dicotomia dramática entre a fama durante a vida de um compositor e sua condição posterior é incomum.” Schubert era um compositor popular. Muitas de suas canções foram primeiro publicadas com acompanhamento de violão. Para Gibbs, as duas imagens não são contraditórias. “Não é necessário haver contestação sobre qual época conhece Schubert melhor, mais autêntica, completa e profundamente – a música transcende o tempo de sua criação, mesmo testemunhando esse tempo”.

Macaco incômodo. As famosas schubertíades tinham alcance maior do que hoje supomos. O primeiro ensaio, de Leon Botstein (O Realismo Transformado: Schubert e Viena), é revelador. “Nenhuma consideração sobre a arte, a música e a literatura em Viena nos anos de 1820 pode ser completa se não levar em conta as intromissões peculiares da política nas vidas pessoais dos artistas. O fato de que muita música de Schubert tenha sido escrita para uso em ambientes sociais de seu próprio mundo local torna especialmente pertinente a procura por conexões entre a sua música e a cultura política.” Em suas memórias, Bauernfeld, amigo de Schubert, é enfático: “A juventude de hoje não pode imaginar a humilhante pressão sobre nossos espíritos criativos, sofrida por nós, jovens, aspirantes a escritores e artistas. A polícia, em geral, e a censura, em particular, pesavam sobre nós como um macaco que não conseguíamos tirar de nossas costas.” 

O regime cooptava as melhores cabeças e lhes oferecia empregos seguros. Muitos dos frequentadores das schubertíades – noitadas de poesia, música, dança, teatro e vinho – eram funcionários públicos. Ou seja, eram “educados, cultos, e também covardes” (Botstein). Indignado com o fechamento de um clube que abrigava reuniões semelhantes, o poeta e dramaturgo Grillparzer escreveu uma engraçadíssima sátira da Flauta Mágica de Mozart, símbolo das ideias liberais da década de 1780. Inventou uma segunda parte onde Sarastro vira funcionário público civil nostálgico pelo passado; Tamino perdeu a flauta mágica e trabalha em escritório; Papageno não resistiu a uma oferta de propina; a Rainha da Noite está presa porque roubou a luz da sabedoria e a transformou num meio artificial de acender cigarros. E a Rainha ordena a Monostatos que se assegure de que os funcionários civis dela fiquem suficientemente ocupados para que não tenham tempo de ler.

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A música era a forma menos suscetível a interpretações políticas e ideológicas, diz Botstein, e por isso floresceu como nunca nos anos Biedermeier, Mas “nesses círculos íntimos – as tardes e noites de poesia, canção, teatro e conversas –, a desconfiança, o medo e o ressentimento nunca estavam muito longe da superfície”. Foi nesse contexto que Schubert e amigos de schubertíades chegaram a ficar presos por algumas horas por supostas ofensas ao regime.

O terceiro ensaio de leitura obrigatória, de David Gramit (A Paixão pela Amizade: Música, Cultura e Identidade no Círculo Schubert), mostra como Schubert, mesmo tendo nascido em bairro pobre de Viena, conseguiu conviver com a elite pensante vienense porque desde os 8 anos integrava como soprano o coral da Catedral de Santo Estêvão e nesta condição estudou no elitista colégio Konvikt. E o insere no contexto político reacionário que vigorou entre 1815 e 1848 na Viena de Metternich (o chamado período Biedermeier). “A fissura de cunho social não se situava entre o burguês e o boêmio”, anota Gramit, “mas antes entre o homem comum e o culto”. Botstein fala do papel da música, “veículo de comunicação incorruptível”: em um mundo “onde não se podia acreditar nem nos próprios amigos ela oferecia a possibilidade de comunicação secreta sem desonestidade, algo difícil de se conseguir com a linguagem comum”. 

Violetas noturnas. Apesar de a célebre Schubertíade na Casa de Josef von Spaun desenhada em 1868 por Moritz von Schwind mostrar o compositor ao piano e os amigos cercados desde as primeiras filas por belas mulheres, estas reuniões eram basicamente masculinas. Gramit faz um histórico da questão da homossexualidade de Schubert desde o primeiro artigo do musicólogo Maynard Solomon, nos anos 1980, levantando a questão de modo aberto pela primeira vez, até as publicações de Lawrence Kramer e os debates posteriores. 

O relacionamento de Schubert com o poeta Johann Mayrhofer (1787-1836) é uma dessas evidências. Eles se conheceram numa schubertíade em 1814. Schubert compôs 50 canções sobre seus poemas (entre outros, o poema cifrado Nachtviolen ou Violetas Noturnas). Susan Youens põe em dúvida, no ensaio Schubert e seus Poetas, a qualidade literária de poetas amigos que Schubert musicou. Mas tira Mayrhofer do balaio dos medíocres. Viveram juntos entre 1818 e 1820 no n.º 2 da Wipplingerstrasse; em 1821 Schubert mudou-se para o n.º 21 da mesma rua, a poucos metros. 

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Mayrhofer é emblemático do que John Reed, em seu livro Schubert, de 1987, chama de “caráter curiosamente esquizofrênico da sociedade vienense da época: de um lado uma burocracia gigantesca, mas ineficiente; e, de outro, uma classe média civilizada e tolerante, dedicada às atividades artísticas”. Desde 1815 era censor, portanto, “ao mesmo tempo poeta amante da liberdade e zeloso censor de livros”. Em 1831 tentou suicidar-se atirando-se no Danúbio mas foi salvo (como Schumann 23 anos mais tarde). Em 1836, atirou-se da janela do Departamento de Censura, morrendo 40 horas depois. 

Gramit argumenta que “o destino, embora trágico, de Mayrhofer pode ser rejeitado como irrelevante à arte autônoma” tal como a encaramos atualmente. “Da mesma forma, o próprio Schubert pode ser considerado fora de seu contexto, e sua música isolada de seus contornos. O resultado é música ouvida como som puro ou a expressão das eternas leis estéticas (...). Tal segregação de arte e ideias, retiradas das circunstâncias da vida, é bem adequada à sala de concertos e a seu ideal de autonomia estética, mas ouvir essa música ‘pura’ é também calar as vozes que uma vez a envolveram e lhe deram significado”.

Devolver a Schubert todo o comprometimento e urgência que fluem de suas criações é fundamental para compreendê-las. Gramit dá o xeque-mate ao propor uma escuta alternativa que “reconhece que a arte (...) ganha sentido não apenas por meio da contemplação estética, mas também por associações menos rarefeitas. Reconhecer isso é, afinal de contas, simplesmente levar Schubert a sério (...) A música de Schubert rejeita seu esplêndido isolamento mas, ao fazê-lo, revela uma verdadeira voz humana ameaçada pelas (e engastadas nas) estruturas do poder, que sobrevive em parte pelo fazer musical. A recuperação e a sobrevivência continuada dessa voz, eu argumentaria, será uma ampla compensação pela perda de um monumento cultural eterno, mas neutralizado.” *João Marcos Coelho é jornalista, crítico musical e autor de 'Pensando as Músicas no Século XXI' (Perspectiva) 

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