Aos 60, Israel reconta sua história

Nova geração de pesquisadores diz que país participou ativamente da expulsão de 700 mil palestinos durante a guerra de 48

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Deir Yassin era uma pequena aldeia localizada no topo de um morro onde viviam aproximadamente 400 árabes palestinos no início de 1948. Lá de cima, ao longe, dava para ver a estrada que levava à Jerusalém sitiada. A comunidade judaica na Cidade Santa passava fome e as forças de Mohammad al-Husayini, grão-mufti e líder árabe da região, lutava para dar-lhe fim. Nos arredores, a Haganá, grupo paramilitar formado para defesa dos judeus, procurava ganhar tantas aldeias quanto possível. Seu objetivo era abrir a estrada para Jerusalém eliminando os pontos onde franco-atiradores impediam o avanço dos comboios de comida. Os guerrilheiros da Stern Gang e do Irgun, grupos terroristas judaicos de ultradireita, subiram para Deir Yassin no dia 9 de abril. Foi um massacre. Na última quarta-feira, Israel completou 60 anos. A guerra que possibilitou a fundação do Estado, em 1948, jogou no exílio 700 mil palestinos. Eles continuaram no entorno: em Gaza, na Cisjordânia e Jordânia, na Síria, no Líbano. O problema se recusa a ir embora. Na historiografia tradicional de Israel, os árabes eram os responsáveis pelo próprio infortúnio. Para a geração conhecida como "novos historiadores", que hoje são a corrente dominante, não foi bem assim. Durante várias décadas, o discurso oficial de Israel foi aquele de Abba Eban, ex-chanceler e um dos primeiros historiadores do país. Em 1948, os líderes dos países árabes pediram por rádio que os palestinos deixassem suas terras para que seus exércitos entrassem massacrando os judeus. Quando fracassaram, a população local não tinha mais como voltar. Consultando estritamente fontes oficiais do governo israelense, Benny Morris, autor de The Birth of the Palestinian Refugee Problem (O Nascimento do Problema dos Refugiados Palestinos), conseguiu provar que, em pelo menos 49 aldeias árabes, a população não saiu: foi expulsa pelas forças militares judaicas; em 62 aldeias, fugiram com medo de que um massacre pelos judeus estivesse por vir. Em apenas seis aldeias Morris descobriu indícios de que as ordens de retirada partiram de líderes palestinos. Na última edição de seu livro, lançada em 2004, ele lista mais que isso: houve episódios repetidos de estupro durante as operações. O maior dano causado pelos novos historiadores talvez seja à imagem mítica de David Ben Gurion, o estadista com origem na esquerda e fundador de Israel. O Massacre de Deir Yassin, tornado público no mesmo dia em que ocorreu pela imprensa internacional, sempre foi apresentado como amostra dos desmandos dos militantes radicais da direita. Ben Gurion era o oposto disto. Por suas mãos, a civilização chegava à Palestina. Mas, segundo os relatórios e depoimentos recolhidos por Ilan Pappé, autor de The Ethnic Cleansing of Palestine (A Limpeza Étnica da Palestina), a expulsão dos árabes sempre foi o objetivo de Ben Gurion. O velho premiê, com a expressão sempre suavemente concentrada e os cabelos eriçados que lhe conferiam um ar excêntrico, considerava que, se houvesse árabes demais no Estado que caberia aos judeus, em poucas décadas Israel deixaria de ser um país judaico. Expulsou - e expulsou de propósito. Tom Segev, que escreveu One Palestine: Complete (Uma Palestina, Completa), investe contra outro consenso. Aquele de que os britânicos, que mantiveram o controle político da região entre o final da 1ª Guerra e a fundação de Israel, preferiam os árabes. Nem tão eficientes quanto gostariam de parecer, ansiosos por livrarem-se do projeto de país em ponto de explosão, divididos internamente no governo da província, os britânicos, ao menos em Londres, tinham simpatia pela causa judaica. Aquilo que os novos historiadores israelenses têm em comum é o fato de que, consultando documentos, descobriram que a história de seu país estava mal contada. Mas não interpretam da mesma forma os fatos que levantaram. Pappé, que é doutor em história por Oxford, deixou Israel no final do ano passado, mudando-se para a Inglaterra, após defender publicamente um boicote acadêmico a seu país. Ligado ao Partido Comunista, defende o direito de retorno dos palestinos a Israel e considera que a política israelense é equivalente ao apartheid sul-africano. Seus companheiros de geração não podiam discordar mais. Benny Morris acredita que, embora tenha incentivado a expulsão dos palestinos, Ben Gurion agiu de forma titubeante no calor dos acontecimentos da guerra. Tinha um olho no pragmatismo político, mas também medo de como a história registraria suas decisões. Morris, que foi o repórter encarregado de acompanhar a diplomacia nacional pelo Jerusalem Post por muitos anos, acreditava na possibilidade de paz até ser frustrado o acordo entre o então premiê Ehud Barack e o líder palestino Yasser Arafat, em Camp David, no último ano do governo Clinton. Ele acredita que a paz não será possível e, ao deixar 150 mil árabes palestinos em Israel, Ben Gurion cometeu um erro. Se era para expulsar, que expulsasse todos. Enquanto Israel celebrava seu Dia da Independência, os palestinos choravam a Nakba - "catástrofe". Não têm, ainda, uma historiografia moderna e, nas escolas, a propaganda política nascida em 1948 ainda é a norma do ensino. Em 2002, num artigo sobre Morris, o editor da revista americana The New Yorker, David Remnick, escreveu: "Enquanto mesmo os mais conservadores líderes políticos israelenses já reconhecem que, no fim, haverá um Estado palestino, os palestinos ainda não mudaram seus mitos originais". Até entre os moderados se questiona a existência de Israel, ele diz. O conflito iniciado no dia em que a ONU decidiu pela partilha da Terra Santa em dois países, um árabe, outro judeu, continua. Sessenta anos depois.

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