Aos cuidados do Chacrinha ARREMATE

O porteiro de poucas palavras disse a Lula tudo o que tinha para dizer: 'O senhor está bem?'

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Por Redação
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CHRISTIAN CARVALHO CRUZÉ baixinho e todo quebrado o jeito de o Osvaldo falar. Um acaipirado doce nos erres que ele inventa, nos esses que ele esquece, nas concordâncias que ele deixa pra lá. E de uma economia desgramada. Palavra, ponto. Palavra, outra palavra, ponto. Silêncio. Ponto. Quer ver só? Como foi de Finados, Osvaldo? "Iguar", ele diz. O que você fez? "Fui na campa". No cemitério? "É. De Vargem Grande." E quem fica lá? "Tenho seis gaveta." Mas quem está nelas? "Ninguém. Tudo vazia." Aos engasgos, e chegando o ouvido bem pertinho dos sussurros dele, você vai sabendo que o Osvaldo não tem a menor intenção de fazer esse passeio em definitivo. Mas gosta de ir ver o lugar onde um dia, absolutamente contra sua vontade, passará mais tempo do que já passou na portaria do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Dos seus 83 anos, há 52 ele trabalha ali. Nenhum dos 3.740 colegas, incluindo os 155 médicos, tem mais tempo de casa. Tampouco tem o cargo do Osvaldo: capitão-porteiro Osvaldo Luiz de Melo. Assim ele foi contratado em 1958, assim ele permanece, único - mesmo 17 anos depois de oficialmente aposentado. Não está na hora de descansar, Osvaldo? "Não, senhor." Por que não? "Descansá cansa. Mió trabaiá."Então lá está o Osvaldo trabalhando. Boa parte do tempo ele fica do lado de fora do saguão, sentado. Ele, o quepe dele e a corrente de vento. "Tá frio, mas tá gostoso." Recebe os pacientes, abre a porta do carro para eles, ensina os caminhos, pega a cadeira de rodas, volta, empurra até o andar desejado, pega o carrinho de malas, empurra também, elevador. Vai num jeito meio bambo de andar por causa da artrose na coluna e ligeiro quanto pode dentro do seu terno azul-marinho com camisa branca e gravata de nó grande. Sempre quer saber: "Como o senhor se sente?" E sempre tranquiliza: "A senhora não se preocupe. Os médico aqui são tudo bão, a senhora logo fica boa". Se custa um pouco a chegar paciente, ou se os outros quatro colegas encarregados dessa primeira assistência lhe tomam a frente, o Osvaldo se impacienta. "Vou lá dentro ver se precisam de mim." Aí o mandam buscar alguém que recebeu alta. "Marca aí", ele pede, apontando o dedo pro Ubirajara Américo, funcionário que comanda o vaivém na portaria. O Ubirajara Américo explica: "Quando eu designo um assistente para um serviço em outro andar eu anoto o horário da ida e da volta. Não tenho que fazer isso com o Osvaldo, mas ele fica bravo se não faço, briga comigo, diz que desse jeito vão achar que ele está se encostando". Duro o Osvaldo se encostar. Nem sentar nos sofazões de couro da recepção ele senta. Jamais. Se você insistir muito, muito mesmo, ele se abanca no máximo no braço de um deles. Daí não passa. O Osvaldo, que mora em Cotia, a uns 30 quilômetros do Sírio, trabalha dia sim, dia não, em turnos de 12 horas. Pega às 8h e larga às 20h. "Ele chega 15 minutos mais cedo e fica ao lado do relógio de ponto até dar o horário correto", conta a Marina Muto, gerente de atendimento do Sírio e chefe do Osvaldo. É ela que às vezes, com muito jeito, pede pro Osvaldo diminuir o número de broches que ele gosta de pendurar no paletó. Corinthians, Palmeiras, PT, PSDB, Unimed, TFP, United Steelworkers (o sindicato dos metalúrgicos americanos) - todos convivem numa harmonia de dar gosto na lapela do Osvaldo. E isso tem pouco a ver com a boa-pracice radical dele, ou com um desejo inconsciente de agradar a todo mundo. Os pins são um momento íntimo do Osvaldo, uma rara conversa dele com ele mesmo sobre o desempenho de sua missão. São as suas medalhas - que ele conquista e exibe como prova dos bons serviços prestados. "O trabalho é a vida dele", conta o José de Melo, o filho que leva e traz o Osvaldo, de carro. Não há metáfora aí: "Se tirarmos o trabalho dele, estaremos tirando a vida dele."O clínico geral Alfredo Salim Helito, o único médico do Sírio - e, portanto, do mundo - cujas recomendações o Osvaldo segue (em relutantes doses homeopáticas), assina embaixo. "Se ele não morrer no trabalho vai ser vindo ou voltando dele." Diabético, hipertenso e com a severa artrose na coluna, por ordem do doutor Salim o Osvaldo deveria carregar apenas papéis. Nada de malas. "Só que eu canso de surpreendê-lo em flagrante delito pelos corredores do hospital. Ele sorri, eu o repreendo e sei que ele vai reincidir", diz o médico, bem-humorado. Nos irritantes dias de folga, o Osvaldo fica em casa mexendo e remexendo no álbum de recortes, fotos e recordações do Sírio que ganhou da família no aniversário de 80 anos. "Ele não lê, não ouve música, não assiste à TV. Quando muito, vai ao portão à tardezinha olhar a rua. Basicamente, ele espera o dia seguinte chegar para ir pro trabalho de novo", conta o José.Se pudesse você moraria no hospital, Osvaldo? "Sim, senhor." Por quê? "O senhor me acompanhe." O Osvaldo me conduz até a portaria antiga do hospital, hoje transformada em memorial, com fotos e bustos de bronze dos fundadores. Foi ali que ele começou como porteiro, depois de ter sido pedreiro numa das obras de expansão do Sírio. "Meu pai", ele aponta para um retrato a óleo pendurado na parede. É o doutor Daher Cutait, diretor clínico do Sírio por quase 40 anos, que só deixou o posto quando faleceu, em 2001. O Osvaldo olha para ele e quer ser eloquente desta vez: "Em 1994, quando me aposentei, o dotô Daher reuniu a turma e falou: 'O Osvaldo se aposenta hoje, mas vai continuar aqui. Enquanto eu viver, ninguém mexe com ele. E depois que eu morrer, se vocês me consideram, também não'. Então eu tô aqui. Admiro o dotô Daher". Mas o palavrório durou pouco, porque o Osvaldo voltou à sua quietude tão logo se viu cercado por duas entusiasmadas funcionárias dispostas a sapecar bicotas nas bochechas dele. "Tá famoso, hein Chacrinha?! Vai sair no jornal..." Chacrinha, Osvaldo?! "Apelido." Como assim?! "As piada que eu contava." Sei. "E também porque ele foi sempre desse jeitinho, baixinho, redondinho, fofinho", explica melhor a auxiliar de enfermagem Estela Regina Rita dos Santos, 35 anos de Sírio, uma das beijoqueiras.Médico o Osvaldo nunca quis ser. Chegou a sonhar com os filhos (duas meninas e um menino, que lhe deram quatro netos e quatro bisnetos) metidos no jaleco branco, mas a realidade não permitiu. Em vez disso, ele e d. Maria Marieta, com que está casado há 60 anos, passaram a vida dando um jeito aqui e ali para conseguir internações e consultas com os médicos do Sírio para os vizinhos mais precisados. O Osvaldo conhece todas as especialidades e especialistas do hospital, e não se enrosca na hora de orientar os pacientes que chegam meio perdidos. "Dotô fulano? Médico da pele." "Dotô sicrano? Médico do olho." "Dotô Beltrano? Médico dos instestino." E assim vai. "Uma vez um paciente que eu nunca tinha visto me bateu à porta do consultório. Contou que precisava de uma cirurgia delicada e tinham me indicado para realizá-la", relembra o gastroenterologista Raul Cutait, filho do doutor Daher Cutait. "Eu quis saber quem havia feito a indicação e ele respondeu: 'Aquele senhor de quepe lá da portaria. Pela cabeça branca, supus que ele trabalha há muito tempo aqui e fui lhe perguntar quem era bom nesse hospital para cuidar do meu problema. Ele me garantiu que com o doutor Raul Cutait eu estaria em boas mãos'." Um craque.Você gosta de futebol, Osvaldo? "Não, senhor." Por quê? "Caus da veiz que o Pelé internou aqui." O que aconteceu? "Ele chamou tudo nóis de trouxa, aí parei." Chamou quem de trouxa? "Disse que os torcedô parece trouxa, que fica brigando de soco no campo. Aí parei." E você fuma? "Não, senhor." Bebe? "Só uma vez." Quando foi? "Era criança." Se sentiu mal e nunca mais bebeu? "Nem tonto fiquei, mas o patrão viu." E finalmente eu entendi um pouco a relação do Osvaldo com o trabalho. Quando ele tinha 15 anos e trabalhava numa fazenda em sua cidade natal, Paraíso Garcia, perto de Curralinho, em Minas, o filho do patrão o convidou para fazer uma visita ao alambique da propriedade. O amigo entornou até cair. O Osvaldo diz que só deu um gole e precisou carregar o sinhozinho para casa. Chegando lá, o pai do menino o chamou de canto: "Osvaldo, você entra na minha casa, toma conta das minhas filhas, conhece tudo aqui. É quase da família. Agora bebendo, como é que eu posso confiar em você? Ponha-se daqui pra fora". O Osvaldo engoliu a humilhação, mas nunca a digeriu por completo. O episódio está dentro dele ainda, e parece ter norteado o resto de sua vida. A lição pra ele é bem simples: "Se ocê quer trabaiá nessa vida, tem que ter a confiança do patrão". Na última terça-feira, alguém que conhece bem as idiossincrasias do capitalismo mandou chamar o Osvaldo. Era o ex-presidente Lula, que, de partida depois de sua primeira sessão de quimioterapia, queria se despedir. O Osvaldo, muitas outras vezes com Lula (nas internações do ex-vice José Alencar e da presidente Dilma Rousseff), manteve o protocolo: "O senhor tá se sentindo bem?", quis saber. "Tô bem, querido", devolveu Lula. Então fizeram o retrato que sairia nos jornais e que o Osvaldo, dois dias depois, ainda levava dobrado no bolso do paletó - junto de uma cópia do boletim médico que anunciava a alta do ex-presidente.Você é feliz, Osvaldo? "Sim, senhor." O que te faz feliz? "Tô trabaiando, converso, ninguém me aborrece. Se fico em casa não vai ninguém..." E você gostaria de morrer no Sírio? "Claro, uai." Por que claro? "Se morro em casa é um trabaio danado conseguir atestado de óbito. No Sírio os médico tem que se virar. Não vão me deixar ficar mais aqui por muito tempo", conclui o Osvaldo, não levando em conta os planos do doutor Raul Cutait de propor um busto de bronze seu para o memorial.}

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