Aprender com a resposta errada

Sigilo quebrado não deve desesperar: se exames são imprescindíveis na organização social, as falhas também são

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Por Jorge Forbes
Atualização:

.O descontrole ocupou as primeiras páginas dos jornais essa semana. Para começar, milhões de estudantes brasileiros e seus pais sofreram, e continuam a sofrer, um verdadeiro inferno, em decorrência do roubo da prova do Enem.

 

 

Nos Estados Unidos, David Letterman, o homem das cartas, famoso apresentador de televisão, foi mais um que expôs a variedade de suas carícias ao olhar público, constrangido por um chantagista - repugnante como todos o são - que o ameaçava com publicar suas incursões secretas se não lhe fosse paga uma alta quantia em dinheiro.

 

 

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O Hotmail, por sua vez, sugeriu que as senhas de seus usuários fossem trocadas devido a inúmeras terem sido descobertas e publicadas.

 

A conclusão é fácil: não há segurança possível se, por segurança, for entendido o direito de cada um manter indevassados todos os aspectos de sua vida. Não há barreira ao conhecimento, atualmente, que não possa ser quebrada. Estamos em uma loteria: quem for sorteado, poderá ter fatos da sua vida expostos. O progresso dos sistemas de controle parece andar sempre um passo atrás dos sistemas opostos, os de sua quebra. Às vezes, como no caso do Enem, nem se tratou de vazamento sofisticado: a cena (repetida à exaustão nos telejornais) do funcionário escondendo o exame dentro da cueca mostra a força devastadora e humilhante do prosaico, apesar dos múltiplos olhares eletrônicos.

 

Além disso, como não pensar que em todos os Enems deve ter havido alguma escapada de informação, da mesma forma que na maioria das provas vestibulares? Quem pode se apresentar como arauto do controle total? Sabemos o que esperar dos burocratas de plantão, nesses casos. Após uma série de mútuas acusações chatíssimas e ad nauseam, que ocupam tempo precioso dos debates televisivos, aparece alguém com a solução esperada e óbvia: um sistema mais aperfeiçoado de controle - nesse caso, um cofre mais bem fechado.

 

Pensa-se que foram hackers especializados os que quebraram as senhas do Hotmail. Não necessariamente. Para a alegria da moçada, o mercado oferece uma série de gadgets tecnológicos capazes de realizar pequenos roubos internéticos, a começar, é claro, pelos arquivos do seu colégio, com o objetivo de melhorar suas notas e as de seus amigos, no clique do ratinho, digo, do mouse. Se antigamente as crianças ficavam contentes em descobrir alguns segredos de seus pais, por ser uma forma de escapar ao jugo da autoridade vivida como aplastrante, imaginem o que sentem ao invadir uma escola, ou, em sonhos, um banco.

 

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Do ponto de vista psicanalítico, temos três tipos de intimidade: imaginária, simbólica e real. A imaginária e a simbólica têm em comum o fato de poderem ser representadas: uma, na imagem e outra, na palavra. O mais interessante para os dias de hoje é a terceira, a intimidade real, por exatamente não poder ser representada. Ela diz respeito a um sentimento silencioso que habita cada pessoa, que, embora não possa ser expresso de nenhuma maneira, nem por palavras nem por imagens, só podendo ser aludido poeticamente, orienta os atos fundamentais da vida de cada um. Imagens podem ser roubadas, palavras podem ser copiadas, mas a intimidade real, não, ela é indevassável exatamente por não ser passível de representação. Um exemplo sensível seria imaginar que você pode ter a fotografia do Roberto Carlos, pode saber muita coisa da vida dele; no entanto, se encontrá-lo, você vai ver que não o conhece. O mesmo se pode dizer da atriz que tem seu corpo nu estampado em uma revista masculina: isso não a faz mais conhecida sua, e ao encontrá-la, nada lhe permitirá uma conversa de alcova.

 

Temos, em decorrência, duas políticas possíveis para tratar o descontrole: imaginar que ele é fruto de imperícia, ou que é estrutural da espécie humana. Ser adepto do primeiro caso é incorrer nas tendências paranoicas atuais de controlar sempre mais e melhor. Não é impossível que cuecas venham a ser proibidas em certas repartições. Concordar com a segunda hipótese, a da falha estrutural na constituição humana, nos conduz a buscar uma nova política que inclua o erro, sem por isso diminuir o acerto.

 

Isso não quer dizer que deveríamos defender uma liberalidade desregrada, claro que não. O que quer dizer é que não devemos nos desesperar frente a exemplos como o da quebra do sigilo do exame do Enem, e muito menos nos confortar com o lamurioso e obsoleto "só no Brasil, mesmo...". Exames são imprescindíveis na organização social; suas falhas, paradoxalmente, também. O governo pode criar o exame para controlar os exames dos colégios. Duro será criar agora o exame do próprio exame que controla os outros exames. Os adeptos da lógica aí reconhecerão um exemplo do famoso paradoxo de Russell. De saber se equilibrar na difícil gangorra do conflito perene do homem com a civilização depende a boa política.

 

O que tudo isso tem a ver com a Olimpíada no Brasil, também notícia maior da semana? Tem o seguinte: há os que acham um absurdo a Olimpíada aqui, devido à premência de problemas sociais que se beneficiariam da verba destinada ao esporte. Para esses, a melhoria social se dá linear e progressivamente, conforme uma hierarquia de valores por eles estabelecida. Nesse caso, a Olimpíada estaria nos últimos lugares das prioridades. Já outros, a maioria - pelo observado nesses dias - entendem que o desenvolvimento social ocorre descompassadamente, por saltos: um lugar avança mais, influencia outro que por sua vez muda, e assim por diante, tal qual uma epidemia.

 

O Enem, mal ou bem, será realizado; Lettermans, mal ou bem, voltarão para casa; as senhas da internet, mal ou bem, serão secretas; cada um ficará bem, se souber se apoiar preferencialmente em sua intimidade real, deixando as outras duas aos leões; e o Brasil realizará a Olimpíada.

 

*Psicanalista, preside o Instituto da Psicanálise Lacaniana - Ipla e dirige a Clínica de Psicanálise do Centro do Genoma Humano - USP

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