Aqui o verão é chuvoso

Oito em dez americanos sentem o país afundando e só 14% crêem no Congresso. Pairam as nuvens

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Por Lúcia Guimarãe e lgsamambaias@gmail.com
Atualização:

Num futuro próximo, quem sabe, a versão podcast deste texto há de ter trilha sonora opcional. E o leitor estaria ouvindo o barulho das ondas que quebram sob a minha janela. O jornalismo não me enriqueceu, mas devo à minha rotina de bóia fria glorificada este momento de privilégio fugaz, no estado do Maine. No topo de uma casa construída no século 19, o ar puríssimo e a visão idílica do Atlântico norte sugerem que tudo vai bem. Mas a proximidade de George W. Bush, que escolheu este fim de semana para visitar o pai no enclave afluente em Kennebunkport, a oeste daqui, me desperta para a obrigação de relatar que este é o verão do descontentamento. Para os americanos, bem entendido (o Brasil freqüenta as primeiras páginas do New York Times e do Wall Street Journal como um inquieto gigante emergente). De cada dez americanos, oito acham que seu país está indo para o brejo. Não é preciso esperar pelo inverno do hemisfério norte para tomar carona do monólogo de abertura de Ricardo Terceiro. O corcunda de Shakespeare era especialista em inveja e rejeição. E, como bem lembram os caminhoneiros brasileiros, "a inveja é uma merda", perdão pela licença chula da filosofia de pára-choque. Mas a inveja é um novo ingrediente da psique americana. O aumento expressivo da desigualdade no último boom econômico, deixou a impressão de que as oportunidades grassam para uma minoria e novos ricos são beneficiários de um vácuo ético e regulatório. A inveja, a rejeição internacional, o desemprego, o crédito apertado, a falta de imaginação dos líderes e as mordidas de mosquito se abatem sobre os americanos como há muito não se via. Quando a página de fofocas de um tablóide popular nova-iorquino noticia o embaraço de um milionário hedgefunder cujo cavalo puro sangue foi retomado por causa de um cheque voador, que saídas sobram para os resignados a apostar em cavalos? Quanto pior melhor para Obama? Não há idéias democratas na atmosfera que representem uma mudança fundamental de curso, e o público pouco espera dos políticos eleitos - só 14% têm visão positiva do Congresso. A crise dos empréstimos sub-prime poderia ter sido prevista pelo estudante de uma escola técnica secundária. A mistura de complacência política, desgoverno financeiro e desinformação do eleitor encalharam o país. Quem paga a conta, é claro, não é o sujeito que perdeu o puro-sangue. É o otário iletrado que comprou a casa do banqueiro desonesto e agora está morando no carro com a família, usando o banheiro do Starbucks para fazer suas abluções matinais. O populismo é um bom termômetro de desgoverno porque se alimenta de insegurança e insatisfação. Está na moda falar mal de rico, mas o queixo coletivo caiu quando George W., epítome do privilegiado pelo berço esplêndido, foi surpreendido, sem saber que havia um microfone ligado, dizendo que a crise das hipotecas era resultado da ganância de Wall Street, a mesma desregulada Wall Street que age sob seu nariz há sete anos. Na demagogia do "nós e eles", o presidente tentou de trocar de time. O índice de desemprego - 5,7% - divulgado na sexta-feira, apesar de continuar subindo, foi saudado como menos catastrófico do que o previsto inicialmente por economistas. Mas não há tecnicalidade acadêmica capaz de convencer os americanos de que não há uma recessão em curso. O país que inventou o automóvel está pisando no freio - os motoristas rodaram 60 bilhões de quilômetros a menos em 2008, a primeira queda em pelo menos cinco décadas. O último índice de confiança do consumidor é o mais baixo desde 1992. A elite de Nova York, cuja principal fonte de receita é Wall Street, está tão assustada com a próxima eleição municipal que há um movimento nascente para reverter a lei de limite de mandatos e permitir a Mike Bloomberg concorrer pela terceira vez. Não há nenhum candidato de peso no horizonte. Na ausência de idéias, indivíduos, como o desapaixonado e eficiente Bloomberg, tornam-se Padres Cíceros. O novo Batman, The Dark Night bateu recordes sucessivos de bilheteria nos Estados Unidos. Analistas de plantão acham que a versão mais sombria do homem morcego combina com o clima do verão. A revista The Economist, que estampou uma desconsolada Estátua da Liberdade em sua capa ?America Infeliz?, de 24 de julho, é uma notória torcedora da capacidade de reinvenção dos Estados Unidos. A mesma revista foi a primeira grande publicação a denunciar os excessos do puritanismo politicamente correto e a mania da vitimização, no verão de 1991. Neste verão, a revista faz a lista de achaques muito mais graves e teme que os americanos estejam paralisados com pena de si mesmos. Com sua moeda desvalorizada que os impede de falar alto na Galeries Lafayette ou jogar moedas na Fontana di Trevi, seus SUV''s estacionados por causa do preço da gasolina, os americanos estão procurando repositórios de culpa. Eles vão do presidente mais impopular desde Richard Nixon até estes chineses que não param de crescer, consumir, poluir e tomar empregos com seus salários baixos. Embora a escassez de imigrantes legais qualificados já seja reconhecida como um problema para economias como a de Nova York, está difícil encontrar candidatos ou políticos eleitos que toquem no vespeiro da imigração com sinceridade. O populismo antiimigrante, exacerbado neste verão, cai como uma luva na sensação pública de que o aperto econômico pode ser aliviado sem milhões de ilegais que são parte importante da força de trabalho do país. O realinhamento cultural internacional segue o realinhamento econômico. Mas a melancolia americana é má notícia para todos, mesmo para quem não tem do que se queixar. QUINTA, 31 DE JULHO Greenspan, o cabisbaixo Em entrevista a uma rede de TV dos EUA, o ex-presidente do Federal Reserve (Banco Central americano), Alan Greenspan, disse que o risco de recessão no país é de 50% e que a situação só começará a ser revertida quando o preço dos imóveis parar de cair.

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