Arte de ponta-cabeça

A invasão de uma galeria por pichadores põe em discussão os limites entre crime e arte

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Por Ivan Marsiglia
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"Ataque tsunami!", gritou alguém, e a ação não durou mais do que cinco minutos contados no relógio. Às 4 da tarde de sábado, a poucos metros da movimentada praça Benedito Calixto, em Pinheiros, cerca de 30 jovens invadiram a galeria de arte, sacaram latas de spray das bermudas largas e picharam quadros, paredes e objetos em exposição. Uma névoa de tinta acrílica tomou as salas, como um fluorescente fog paulistano. E, antes que ele se dissipasse, não havia mais ninguém ali. Apenas duas funcionárias trêmulas e atônitas. Semana passada, os sócios da galeria paulistana Choque Cultural viveram na pele o conceito expresso no nome da casa. Acostumados a lidar sem problemas com a chamada cultura de rua, do graffiti à tatuagem, passando pela moda e o design gráfico, Baixo Ribeiro, Eduardo Saretta e Mariana Pabst Martins (filha do pintor cearense Aldemir Martins) ficaram - não há outra palavra - chocados. "Já fui pichador e respeito o trabalho deles, mas fomos agredidos e não queremos falar sobre isso", protestou Eduardo, que até agora não reabriu a galeria. A cena dos pichadores em São Paulo é um universo misterioso de anônimos e pseudônimos. Um dos poucos que se expuseram publicamente foi Rafael Guedes Augustaitiz, de 24 anos, o "Rafael Pixobomb", jovem de família pobre do município de Itapevi, região metropolitana da cidade, que idealizou a invasão da galeria e também do Centro Universitário Belas Artes, na Vila Mariana, em julho. Naquela ocasião, na noite de apresentação de seu trabalho de conclusão de curso, Rafael chegou à faculdade com 40 rapazes encapuzados e fortemente armados de latas de spray. Em poucos minutos, cobriram de tinta a fachada, a recepção, as escadas e as salas de aula. Houve briga com seguranças e funcionários. Rafael foi preso pela PM. Até esse dia, ele cursou a Belas Artes graças a uma bolsa de estudos e já tinha cumprido todos os créditos para se formar. Foi expulso e o TCC, que segundo disse visava a discutir os limites da arte, reprovado. Nunca se explicou. "A ação fala por si mesma", costuma dizer. "Foi uma manifestação contra a domesticação da arte de rua, transformada em mercadoria", interpreta o fotógrafo Choque, de 22 anos, outro que não ousa dizer o nome e que documenta, desde 2006, a cena dos pichadores em São Paulo. Choque, cujo apelido nada tem a ver com a galeria Choque Cultural, esteve presente e fotografou os dois ataques comandados por Rafael Pixobomb. Conta que ele é tido como herói na comunidade de jovens que escalam fachadas e edifícios para proclamar sua versão particular do cogito: picho, logo existo. "É uma luta por reconhecimento, eles querem se tornar visíveis para a sociedade", acredita o fotógrafo, para quem o pichador típico trabalha como motoboy ou em subemprego, é oriundo de um lar desestruturado e trata seus colegas de grupo como "família". Nos encontros semanais que promovem à noite no centro da cidade, os pichadores costumam levar folhas de papel sulfite com suas garatujas, que autografam e trocam como se fossem figurinhas. Para o também fotógrafo e jornalista João Wainer, de 32 anos, que finaliza um documentário sobre o assunto, outra grande motivação é a adrenalina, o prazer do risco, que fascina tanto esses rapazes pobres da periferia quanto os garotos de classe média que descem a Maresias, no litoral paulista, em busca da onda perfeita. "Não se trata de ser contra ou a favor da pichação", ressalta João. "Ela é crime, ponto final. Agora, isso não nos impede de querer entender seus motivos, lançar uma luz sobre o fenômeno", explica. O filme, que será lançado no final do ano pela produtora Sindicato Paralelo, acompanha ações vertiginosas desses pichadores, galgando sem qualquer preparo ou equipamento de segurança verdadeiros arranha-céus para deixar sua marca nos pontos mais inacessíveis da cidade. O título provisório, A Grande Arte da Pichação de São Paulo, pode parecer exagero ou condescendência para com uma atividade que emporcalha áreas públicas e privadas da cidade, mas refere-se, antes, ao novo olhar que essa forma de expressão urbana tem recebido da parte de estudiosos em antropologia e artes visuais em todo o mundo. A exemplo do graffiti, que aos poucos conquistou reconhecimento como manifestação artística, a pichação está deixando de ser associada apenas ao que o Código Penal brasileiro chama, no artigo 163, de crime de dano contra o patrimônio. "É crime e é arte", resume Martha Cooper, legendária fotógrafa do New York Post que registrou a cena nova-iorquina da street art nos anos 70 e 80. O próprio Rafael Augustaitiz tem como guru o escritor e ensaísta norte-americano Hakim Bey, autor da máxima "arte como crime; crime como arte". Hakim pregava ações de "terrorismo poético", como a invasão de apartamentos para, em vez de roubar, deixar objetos que surpreendessem e transformassem a vida do proprietário. O fato é que São Paulo, ao lado de Barcelona e Melbourne, está na vanguarda desse movimento no mundo. Entre os apaixonados pela pichação paulistana está o cineasta chileno radicado no Canadá Pablo Aravena, autor do documentário Next: Histórias do Graffiti. "Escrever em um prédio como se ele fosse um livro, uma mídia, é um conceito muito sofisticado para mim", afirma Aravena em um trecho do filme de João Wainer. O motivo de tanto interesse pelos rabiscos muitas vezes ininteligíveis da capital paulista está ligado à origem e ao estilo de sua caligrafia. A pichação surgiu em São Paulo nos anos 60 e 70, nas frases de protesto contra a ditadura militar. Depois, reapareceu em forma de rebeldia sem causa, ou mensagem comercial, em meados dos anos 80. Ficaram célebres as inscrições "Juneca Pessoinha" e "Cão Fila Km 26". Aos 38 anos, o grafiteiro Juneca não se considera mais pichador. Vive de seu trabalho, de de aulas e oficinas que ministra. "Nunca imaginei que um dia seria artista plástico", conta. "E foi a pichação que me fez descobrir esse caminho." Alvo da perseguição implacável do então prefeito Jânio Quadros, Juneca parou de grafitar novamente por causa do projeto Cidade Limpa, da atual administração municipal - que outro dia apagou um mural na avenida 23 de Maio de autoria dos grafiteiros Os Gêmeos, que já expuseram na galeria Fortes Vilaça e até na Tate Modern de Londres. Os Gêmeos, que subscreveram um abaixo-assinado pela reintegração de Rafael ao curso da Belas Artes, sempre se disseram influenciados pela pichação paulistana, com sua tipologia uniforme e vertical conhecida como "tag reto". Diferente de tudo o que há no gênero no mundo, ela é inspirada em um tipo de letra comum nos discos de punk e heavy metal da década de 80, quando a moda era usar o alfabeto rúnico, dos vikings. "É curioso ver como a tipologia dos bárbaros nórdicos veio dar aqui, nos povos bárbaros de São Paulo", brinca Choque. Ao "atropelar", na gíria da tribo, instituições como a Belas Artes e a galeria Choque Cultural, Rafael Augustaitiz, que domina o desenho e o graffiti, faz o caminho oposto ao de Juneca e opta pelo radicalismo da pichação. Rumores dão conta de que sua próxima "arte" terá como alvo a Bienal de São Paulo. Procurado pela reportagem, Rafael não quis dar entrevista. "Palavras não fazem meu tipo", declarou, em frase paradoxal para um pichador. Mas enviou uma citação do filósofo alemão Friedrich Nietzsche: "Como falta tempo para pensar e ter sossego no pensar, não se estudam mais as opiniões divergentes: contenta-se em odiá-las." Para João Wainer, a galeria atacada perdeu a oportunidade de abrir a cena do crime ao público e transformá-la em exposição. Para ele, vale a pena parar para pensar na feiúra das pichações paulistanas. "Se você esticar a cabeça para fora da janela vai ver a dimensão que isso tem na vida urbana", diz. Um tsunami que o Cidade Limpa com suas latas de tinta branca não consegue encobrir.

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