As cineastas penam no mundo do cinema

Mesmo sem a Palma de Ouro, Lynne Ramsay ainda vai dar o que falar

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Por The Economist
Atualização:
Diretora Lynne Ramsay, vencedora do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes pelo seu filme 'You Were Never Really Here' Foto: Regis Duvignau/Reuters

As mulheres, quando estão atrás das câmeras, não têm muita vez no Festival de Cinema de Cannes; ainda que, em 2017, com três longas, entre os 19 que compunham a seleção oficial do evento, elas tenham tido um bom ano. Ao longo de toda a história do festival, só uma diretora ganhou a Palma de Ouro: em 1993, com O Piano, Jane Campion, levou o prêmio máximo da competição (mas teve que dividi-lo com Chen Kaige, naquele ano concorrendo com Adeus, Minha Concubina). “Setenta anos de Cannes, 76 Palmas de Ouro, das quais somente uma para uma mulher. Sem comentários”, fulminou a atriz francesa Isabelle Huppert durante a festa organizada para celebrar o septuagésimo aniversário do festival.

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A edição deste ano bem que poderia ter premiado uma segunda mulher, e talvez devesse tê-lo feito. O vencedor da Palma de Ouro, The Square, comédia do sueco Ruben Östlund sobre o universo das artes plásticas não foi exatamente uma unanimidade. Com O Estranho que Nós Amávamos, a americana Sofia Coppola ficou com o prêmio de melhor direção, que antes também só havia sido concedido uma vez a uma mulher.

Mas foi outra cineasta, a escocesa Lynne Ramsay, que apresentou aquele que talvez tenha sido o filme mais memorável do festival: You Were Never Really Here. Pouco antes da estreia do longa, na última noite da competição, Ramsay ainda trabalhava em sua edição (a película foi exibida sem os créditos finais). Estrelado por Joaquin Phoenix, no papel de um veterano de guerra psicologicamente traumatizado, que também foi agente do FBI antes de passar para o ramo da “segurança privada”, o filme é uma fascinante meditação sobre a alma de um indivíduo torturado, sob a roupagem de um thriller de ação. A produção, que teve seus direitos de exibição nos EUA adquiridos pela Amazon Studios, em negócio fechado em Cannes no ano passado, deu a Ramsay o prêmio de melhor roteiro (dividido com Yorgos Lanthimos e Efthymis Filippou, diretores de The Killing of a Sacred Deer), e a Phoenix, o de melhor ator.

Cena do filme 'You Were Never Really Here', de Lynne Ramsay 

You Were Never Really Here acompanha o personagem de Phoenix, “Joe”, que tenta se haver com seus demônios interiores enquanto toma conta da mãe idosa e se desincumbe de um trabalho arriscado: resgatar Nina, a filha adolescente de um político que foi capturada por uma rede de pedofilia em Nova York. Apesar de o filme ser pontuado por ações de violência e brutalidade, muitas das quais perpetradas pelo protagonista, a câmera de Ramsay se concentra em Phoenix principalmente nos momentos em que seu personagem se rende ao desespero existencial e à repugnância que sente por si próprio.

O olhar de Joe torna-se baço e distante quando ele é assaltado pela lembrança de situações em que mulheres são vítimas de homens cruéis, contra os quais ele nada pode fazer: quando era criança, Joe vê sua mãe ser brutalmente violentada, enquanto ele permanece escondido dentro de um armário; já no FBI, investigando um caso de exploração sexual, o personagem encontra um grupo de jovens mulheres, todas mortas, na carroceria de um caminhão. Joe tem de se esforçar para conter seus impulsos suicidas e salvar uma garota das garras de um político poderoso, centro da trama que conduz o filme. Com menos de 90 minutos e uma trilha sonora etérea e soturna, composta por Jonny Greenwood, da banda de rock Radiohead, o resultado é um filme conciso, tenso, uma obra de violenta introspecção.

O longa anterior de Ramsay, o igualmente intenso Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011), baseado no romance homônimo de Lionel Shriver, também foi aclamado pela crítica em Cannes. Ainda que ela tenha saído novamente do festival sem a Palma de Ouro, You Were Never Really Here assegurou para Ramsay um lugar na história do cinema, não apenas como uma de suas melhores diretoras, mas também como uma das mais interessantes perscrutadoras dos recessos tenebrosos da humanidade.

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