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As duas Américas

Lincoln negro, Barack Obama, como seu modelo, veio para unir; consolidou a alforria, com juros e correção acionária

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Os comovidos festejos pela vitória de Barack Obama trouxeram à memória de jornalistas, políticos e espectadores duas explosões mundiais de alívio e euforia: a queda do Muro de Berlim e a chegada, sem bugs ou quaisquer outros transtornos, do novo milênio. Peço licença para acrescentar outra: o fim da 2ª Guerra Mundial. Digamos que a indicação de Obama como candidato dos democratas foi o D-Day, o dia da invasão da Normandia pelas forças aliadas (junho de 1944), e a eleição de terça-feira, o V-Day, o Dia da Vitória (maio de 1945). Até beijos semelhantes ao daquela legendária foto de Alfred Eisenstaedt, na Times Square, após a capitulação japonesa, eu vi aos montes na cobertura da CNN, depois que a guerra entre republicanos e democratas chegou ao fim, na madrugada de quarta-feira. Coitada da dupla McPalin, rejeitada pelo mundo inteiro como um avatar do Eixo. Há muitas diferenças entre as duas guerras, claro; e uma delas diz respeito a um prospectivo (e inúmeras vezes já sugerido) Plano Marshall. Ao contrário do original, o de agora não beneficiaria apenas a Europa, mas também (e prioritariamente) os EUA. Que tal um sucedâneo do Tribunal de Nuremberg para execrar publicamente todas as besteiras, imposturas e calúnias ditas e escritas ao longo da campanha eleitoral? Sem penalizações. Nada de forca nem prisões, apenas a execração pública de alguns gauleiters da política e da mídia. Mas nem essa forma branda de separar a oposição honrada da mera velhacaria seria aprovada pelo grande vencedor da guerra, cujo triunfo se consolidou, justamente, por sua vocação para o diálogo e a conciliação. Tabula rasa, estaca zero, melhor assim. Obama veio para dar um exemplo, para unir. É o Lincoln negro. Como seu modelo, também despontou em Illinois e chegou à presidência sem grande experiência política. Lincoln acabou com a escravidão; Obama consolidou a alforria, com juros e correção acionária. Se também deu fim a outra guerra civil, entre a América beata, racista e ignorante e a América esclarecida, civilizada e tolerante, só o tempo (repito: tempo, não templo) dirá. Ainda há brasa sob as cinzas da fragorosa derrota imposta às forças da estagnação e do reacionarismo, aos "idiotas rurais", aos cruzados do fundamentalismo televisivo e radiofônico, aos camelôs do alarmismo ideológico. Gente com generoso espaço na imprensa, como William Kristol (um insulto à sadia diversidade cultivada na página de editoriais do New York Times), Charles Krauthammer (a mais recalcitrante carpideira de McCain), Michael Gerson (outro assombrado pela desconfiança de que os democratas, dominantes no Congresso, exercerão seu mandato com uma chibata na mão), Álvaro Vargas Llosa (filho do escritor, articulista da revista The New Republic, outro com a idéia fixa de que Obama poderá cair "no canto de sereia da facção socialista do Partido Democrata"). Claro que nenhum desses supera Rush Limbaugh em baixeza e popularidade. Na sexta-feira, o folclórico radialista continuava xingando Obama de "gângster de Chicago". No mais recente romance de Paul Auster traduzido pela Companhia das Letras, Homem no Escuro, um crítico literário aposentado, de 72 anos, recluso numa cidadezinha de Vermont, combate uma insônia crônica caraminholando uma distopia ambientada na América de Bush, com dois protagonistas: August Brill, o crítico que desenvolve a história, e Owen Brick, um mágico profissional involuntariamente transportado no tempo e no espaço para a realidade paralela imaginada por Brill. Brick custa a entender o que lhe aconteceu ("despertou" numa América flagelada por uma nova Guerra da Secessão) e a metabolizar a missão de matar o "autor" do pesadelo, e, só assim, acabar com a guerra. Na América que Brill remói de olhos abertos, dois países se defrontam: os Estados Unidos (em torno de Bush e seus federalistas) e os 16 Estados Independentes que se rebelaram depois do roubo nas eleições presidenciais de 2000. A secessão teve início em Nova York. Em 2004, Maine, New Hampshire, Vermont, Massachusetts, Connecticut, New Jersey e Pensilvânia aderiram ao movimento separatista. Meses depois, Califórnia, Oregon e Washington romperam com Washington para formar a própria república. Em 2005, Ohio, Michigan, Illinois, Wisconsin e Minnesota se uniram aos Estados Independentes, todos imediatamente reconhecidos pela União Européia. Nessa América não houve os atentados de 11 de Setembro, nem seu presidente invadiu o Iraque. Só um flagelo a castiga: um conflito fratricida que já matou 13 milhões de pessoas quando Owen Brick se descobre deslocado para uma cidade rebelada de Massachusetts. Brick é uma fusão do Rip Van Winkle de Washington Irving com o ianque de Connecticut que Mark Twain fez acordar na corte do rei Arthur. Mas sua "viagem" jamais é amenizada pelo humor. Auster não escreveu um romance profético, ainda bem, mas pressentiu uma secessão em potencial em seu país, com os sinais invertidos. Os rebeldes, os separatistas, os confederados da Era Bush são o oposto dos confederados de 1861. A guerra de Homem no Escuro não é mais entre o Norte modernizante e democrático e o Sul latifundiário e escravocrata, e sim entre os partidários de Bush e os Estados que se sentiram esbulhados nas urnas e lutam por uma república afinada com os ideais de seus fundadores, por uma América muito parecida com a que Obama, em sua campanha, prometeu reconstruir: igualitária, pluralista, amistosa, progressista. Uma América que nada tem a ver com Bush, Dick Cheney, Karl Rove, Sarah Palin, Limbaugh, Joe, o Encanador, Fox News e pragas quetais. Uma América que já mudou, e só os republicanos não perceberam. Não sei se vocês notaram, mas a chapa republicana perdeu em todos os Estados que, no romance de Auster, se declaram independentes. Agora é torcer para que as esperanças não se dissolvam no ar e os grotões sosseguem, recolham-se à sua modesta significância, e ajudem a América a recuperar a grandeza perdida.

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