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As polêmicas e interpretações opostas suscitadas pela obra de Machado de Assis

Livro de Hélio de Seixas Guimarães analisa a criação do legado do escritor ao longo da história

Por Ieda Lebensztayn
Atualização:

Imagine-se dono de uma escola. Ao decidir o nome dela, você homenagearia alguém? Escritor consagrado, único a mobilizar há 160 anos ininterruptos a crítica literária no Brasil, seria Machado de Assis um bom nome para uma escola? Tal escolha provocaria polêmica hoje?

Machado de Assis, cuja obra rendeu interpretações opostas 

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+++Machado de Assis e Shakespeare têm muito mais em comum do que você imagina

Pois bem, em 1939, Coelho de Souza, secretário da Educação de Porto Alegre, negou a uma diretora o pedido de dar a uma escola o nome de Machado. Jornais de todo o País expressaram indignação com a negativa, tomando-a como afronta à memória de um símbolo brasileiro. A perspectiva dos defensores dessa escola Machado de Assis faz sentido, como homenagem a nosso grande escritor, apesar do teor de alienação inerente à transformação do autor em estátua. Por outro lado, faz sentido a recusa, ainda mais porque, conhecedor e admirador da obra machadiana, Coelho de Souza julgava disparatado conceder a uma escola elementar o nome de um artista negativista, “fascinante inoculador de venenos sutis”.

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Tanto defender que nosso grande criador literário e estilista da língua seja nome de escola, quanto rejeitar isso, considerando que sua arte nos leva a duvidar das instituições, são posturas que, reveladoras de faces machadianas, dizem também desses diferentes leitores. Com base nesse exemplo, e vigorando o princípio hermenêutico que vincula as partes e o todo, apreende-se o movimento iluminador que perfaz a interpretação construída com minúcia e visão de conjunto por Hélio de Seixas Guimarães, sintetizada no título de seu mais recente livro: Machado de Assis, o Escritor que nos Lê: As Figuras Machadianas Através da Crítica e das Polêmicas

Tal polêmica de dar ou não o nome de Machado a uma escola é trazida à reflexão por Hélio, em seu percurso de análise do contexto político e cultural do Estado Novo. Nesse período, em especial em 1939, centenário de nascimento do escritor, houve, como nunca no País, grandes esforços da intelectualidade e de órgãos do Estado pela consagração de uma figura literária: Machado foi alçado a “patrimônio cultural brasileiro” e incorporado aos manuais escolares. Conforme pondera Hélio, mesmo que os críticos então atuantes, como Lúcia Miguel Pereira, Augusto Meyer etc. não estivessem totalmente alinhados com a política cultural do Estado Novo, seus ensaios e estudos de inspiração biográfica colaboraram para a construção de uma mitologia nacional em torno do menino pobre do morro do Livramento, mestiço, que, trabalhador e artista dedicado, ascendeu a escritor oficial, fundador da Academia Brasileira de Letras.

Célebre em livros didáticos, com mérito e paradoxo, lembram-se de certo professor de melancolia machadiano, consciente de haver servido de agulha para muita “linha ordinária”? Ora, Hélio nos convida a conhecer Um Apólogo – Machado de Assis, primeira adaptação do escritor para o cinema, por Humberto Mauro, para o Instituto Nacional de Cinema Educativo. E analisa o modo como esse filme, primeiro de uma série sobre “vultos nacionais”, serviu para o processo de patrimonialização da cultura brasileira, e para o propósito de valorização do trabalho individual, como se o tempo dos barões e mucamas, de exploração dos subalternos, fosse coisa do passado. Nesse sentido, merece também a atenção do leitor a análise da associação entre Machado e o samba como ritmo conciliatório de classes, nascido no morro.

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Detendo-se no melhor da crítica desde os contemporâneos do romancista até os atuais, Hélio Guimarães, ao longo dos quatro capítulos do livro, perscruta os momentos de inflexão no entendimento da figura e da obra de Machado. Antes de mito nacional e brasileiro exemplar, ele foi visto como escritor de exceção, estrangeirado. Depois, foi interpretado como Shakespeare brasileiro, também como realista e o mais profundo intérprete do Brasil. Hélio depreende essas faces machadianas junto com as polêmicas intelectuais envolvendo nomes como Helen Caldwell, Eugênio Gomes, Roberto Schwarz, John Gledson, Alfredo Bosi, Michael Wood, Abel Barros Baptista. 

Machado de Assis não fez escola. Entretanto, mestre, incita o desejo de conhecer e compreender. Assim, leitor machadiano com vasto conhecimento de sua fortuna crítica, pesquisador e estudioso, Hélio Guimarães apreende como a singularidade da obra de Machado gera uma multiplicidade de interpretações, até contraditórias entre si, a partir das quais Hélio atinge a compreensão de momentos históricos e culturais do país, considerando as polêmicas quanto à pertença nacional e internacional do escritor. Sobretudo, ressalta do livro de Hélio a capacidade exemplar de ouvir o outro, que é força ética. Ao ouvir os variados leitores de Machado ao longo da história, em busca de reconstituir essa figura múltipla, devolve-nos o enigma em sua plenitude, daquele que nos devassa as faces e as sombras: Machado de Assis, o Escritor que nos Lê.

*Ieda Lebensztayn é crítica literária, pesquisadora de literatura brasileira da Biblioteca Brasiliana Mindlin. Autora de 'Graciliano Ramos e a Novidade: O Astrônomo do Inferno e os Meninos Impossíveis' 

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