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Assassinatos pelo telefone

O falso seqüestro, instituição nacional, é parte da extensa lista de novos crimes viabilizados pela tecnologia

Por José de Souza Martins
Atualização:

"Pai, me ajuda!", dizia a voz de uma mulher, entre choro e desespero quando se completou a ligação do telefonema a cobrar. A voz me parecia familiar. "Me ajuda, pai!", implorava. Era pouco depois da hora do almoço de uma quinta-feira. Imediatamente, um cenário se desenhou na minha cabeça. Acontecera um acidente, não havia ninguém por perto, minha filha imobilizada dentro de um carro. "Pai, me ajuda!", repetia, insistente, a voz que se parecia cada vez mais com a de minha filha. "O que aconteceu?!", perguntei-lhe. "Me ajuda!", respondia a voz do outro lado. "Me diga onde você está!", insisti. Se acontecera alguma coisa, fora por perto. Naquela hora, minha filha estaria indo para a universidade. "Eles me pegaram!", disse ela. "Quem? Quem te pegou?" "Fala com eles, pai!", foi a resposta. "Diga onde você está!" "Fala com eles!", repetiu ela. Uma voz masculina, com forte sotaque carioca, carregando nos esses, me disse: "Olha, cara, nós pegamos tua filha. Não queremos fazer nenhum mal a ela, se você fizer o que nós mandarmos". "O que vocês querem?" "Queremos 30 mil. Ou isso ou sua filha morre. Se você não arrumar esse dinheiro, dou um tiro na cabeça dela." Expliquei-lhe que não tinha esse dinheiro nem teria como conseguir um empréstimo em poucas horas. "Tudo bem. Então você tem 15 dias para conseguir o dinheiro. Aí nós soltamos sua filha." O sujeito quis saber se havia mais alguém em casa. Minha mulher, que acabara de sair, por sorte, ouviu o telefone tocar e voltara. Ao me ver em desespero, pegou a extensão, ouviu o que o sujeito estava dizendo, desligou e foi para a rua. Depois de muita conversa, o bandido foi reduzindo o valor do resgate para ficar em R$ 500,00 de créditos telefônicos da Tim e da Claro. Da rua, minha mulher tentava falar com minha filha pelo celular e o telefone não atendia. Ligou para o 190. O policial esclareceu que, provavelmente, era o golpe de seqüestro. Disse para desligarmos o telefone. Mas o sujeito ligou de novo, mais ameaçador ainda. Nesse meio tempo, minha filha ligou para o celular da mãe, para nosso alívio. Naquele mesmo dia, em Sorocaba, um homem recebera telefonema idêntico. "Tinham seqüestrado" sua filha. Quando conseguiu entrar em contato com ela, a filha esclareceu que estava bem. Mas ele teve um enfarte e morreu. Nos últimos meses, várias vítimas desse golpe morreram de enfarte, em seguida. Muitos desses telefonemas vêm de dentro de prisões do Rio de Janeiro. Aparentemente, os autores têm cúmplices fora da cadeia. Enquanto se trata de mera apropriação indevida de dinheiro alheio, a coisa vai sendo levada no alívio de quem, no final, descobre que o filho não foi seqüestrado nem foi morto. Mas, quando os telefonemas resultam em morte, estamos em face de homicídio. Há ainda as conseqüências invisíveis, os danos psicológicos e sociais até irremediáveis, nos medos e neuroses que danificam o modo de viver de famílias inteiras, as somatizações, os danos físicos decorrentes, as mortes antes do tempo. No cidadão impotente e vítima, as instituições também estão sendo ameaçadas. A questão pede outro tipo de reação da sociedade, do Estado, da polícia, da Justiça. Os falsos seqüestros começaram a difundir-se entre nós em 2003 e hoje são uma forma disseminada de violência. Fazem parte da extensa categoria de novos crimes viabilizados pelo progresso tecnológico. É o caso da invasão eletrônica de contas bancárias, que, de tão corriqueira, já não desencadeia providências nem mesmo dos bancos. O que importa pouco, em face de seus lucros extraordinários. É como roubo de carro. De tão freqüente, já ninguém liga. O seguro paga, porque quem paga é o conjunto dos segurados. Raramente um falso seqüestro, um assalto eletrônico ou um roubo de carro é objeto de investigação rápida. São crimes que se transformaram em instituições nacionais. Não os combatemos. Apenas nos refugiamos atrás do silêncio e do conformismo. A cultura do medo é hoje reguladora não só de nossa consciência social e de nossos sentimentos. É reguladora, também, de nossa consciência política. A mídia diariamente nos inunda com notícias sobre toda ordem de delinqüência política, que nos vitima a todos. No entanto, os autores são reeleitos, índices de prestígio crescem em vez de cair. A sociedade está de cabeça para baixo, nada mais é estranho, nada mais merece indignação ou revolta. A disseminação da cultura do medo encoraja a criminalidade onde ela é apenas latente. Há um largo campo da realidade, atravessando todas as classes sociais, em perigo permanente de deterioração social. Supostamente protegidas pelo anonimato e pelas quatro paredes de escritórios e quartos, as facilidades da internet convidam os desprovidos de consciência social e de mentalidade cidadã a cometerem e repetirem o delito. O Brasil delinqüente roubou um amplo território do Brasil fácil e hoje invade nossas casas e nossas vidas. A sociedade não cuida nem vigia, as pessoas se omitem, o governo tolera, a Justiça se refugia nas formalidades. As aberrações não ficam por aí. Há poucos anos fui refém de um assalto em agência do Banco do Brasil, no começo de uma tarde. Fui o escudo que o chefe do trio de ladrões usou para proteger-se no tiroteio que houve. Quando um deles levou um tiro na cabeça, dado pelo despreparado segurança, único bem protegido na sua cabine de aço, ouvi minha sentença de morte. Segurado pelo pescoço com uma chave de braço, vi pelo canto do olho, numa lentidão terrível, o revólver vindo na direção de minha têmpora direita, o dedo trêmulo do bandido no gatilho. Só não morri porque ele era esperto e percebeu rapidamente que morreria se eu morresse: um dos seguranças saíra de trás de um anteparo de proteção e apontava o revólver para a minha cabeça. Atiraria nele quando eu caísse morto. A única palavra de conforto e apoio que recebi foi do próprio bandido, jovem e negro. Com o cano do revólver encostado na minha têmpora, me sussurrou ao ouvido: "Fica tranqüilo. Não vai te acontecer nada."

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