Ator destemido e fiel às convicções, Ed Asner foi exemplo da caça às bruxas do macarthismo

O mínimo que fizeram com Asner foi apelidá-lo de “Jane Fonda da América Latina” e pressionar os patrocinadores de 'Lou Grant' a rifar a série

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

Não perdia um capítulo da série de TV Lou Grant, que muitos de vocês ainda não haviam nascido quando acabou, na CBS e, entre nós, na Globo. Acompanhei com igual deleite outras séries da TV aberta, quase sempre protagonizadas por detetives atípicos, como Jim Rockford (Arquivo Confidencial), Columbo, McMillan, Casal 20, mas Lou Grant era diferente: não se defrontava com bandidos, apenas contribuía para sua punição com a única arma de que dispunha: o jornal Los Angeles Tribune, cuja redação comandava com vigor, impaciência e algumas doses de bourbon.O Los Angeles Tribune era um diário fictício, assim como o seu liberal (no sentido americano do termo), íntegro e idealista editor-chefe, atributos especialmente sedutores para nós, que mal começávamos a enfrentar o último general da ditadura, o Figueiredo. Desde Walter Burns não aparecia na tela um editor de jornal tão divertidamente ranzinza e ladino. Burns, não custa lembrar, era o chefe de redação na peça A Primeira Página, quatro vezes adaptada ao cinema e encenada até no Brasil. Escrita por Ben Hecht e Charles MacArthur, brilhantes jornalistas de Chicago nos anos 20 do século passado que depois fariam exitosa carreira como roteiristas em Hollywood, é um clássico da comédia americana. Sua esgrima dialógica marcou época e influenciou mais de uma geração de autores teatrais e cinematográficos. O último a filmá-la foi Billy Wilder, com Walter Matthau no papel que Cary Grant, Robert Ryan e Nathan Lane também encarnaram com a exuberância histriônica exigida pelo papel.  Conhecíamos Lou Grant de outra sitcom, Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970-77), na qual seu pavio curto dava choques na redação de um telejornal. No epônimo spin-off dessa série, o irascível editor trocava o vídeo pelo jornalismo impresso, orquestrando pautas sobre algumas das questões mais candentes da América de Ronald Reagan. Ao longo de cinco temporadas (1977-82), Lou Grant emplacou 13 prêmios Emmy e seu intérprete, Ed Asner, cinco, afora os Golden Globes que também conquistou. Por que falar de Lou Grant numa hora dessas? Porque seu intérprete morreu no domingo passado, aos 91 anos, e sobretudo porque Ed Asner foi, no exercício da profissão, um ersatz de Lou Grant, um ator destemido e fiel às suas convicções políticas. Se tivesse sucumbido a um enfarte um ano atrás, poderíamos jogar a culpa no Trump, que o ator, democrata raiz, execrava com todas as suas vísceras. 

O ator Ed Asner em sua casa em Los Angeles Foto: Damian Dovarganes/AP

Ator meio por acaso, Asner, judeu e filho de imigrantes russos estabelecidos no Missouri, foi operário, taxista e vendedor de enciclopédias antes de pisar num palco de teatro, mirar uma câmera de TV e testar sua versatilidade vocal diante de um microfone.  Sua militância política o alçou ao topo do sindicato dos atores (SAG, Screen Actors Guild), que presidiu de 1981 a 1985, sempre trafegando pela esquerda. Convenceu a classe a apoiar a greve dos controladores de tráfico aéreo, em 1981, a luta pelos direitos dos animais e contra a presença de militares americanos em El Salvador. Quando deslanchou uma campanha bem-sucedida para arrecadar US$ 1 milhão em remédios e distribuí-los entre as forças rebeldes de El Salvador, nos moldes da que Hemingway, Lillian Hellman e membros da colônia cinematográfica fizeram em favor dos antifranquistas na Guerra Civil Espanhola, quatro décadas antes, Reagan subiu pelas paredes e a direita republicana convocou seus cruzados.  O mínimo que fizeram com Asner foi apelidá-lo de “Jane Fonda da América Latina” e pressionar os patrocinadores de Lou Grant a rifar a série.  Reagan via a insurgência em El Salvador como uma ameaça bolchevique ao continente, o prenúncio de uma nova Cuba. Sua visão geopolítica era a de um guerreiro frio desiludido com o New Deal de Roosevelt, de que fora entusiástico defensor. Deu apoio financeiro e armas a ditaduras abaixo do Rio Grande. Contra a vontade do embaixador americano em El Salvador, fortaleceu de todas as maneiras o “assassino patológico” Roberto d’Aubuisson, major formado na Escola das Américas, alma mater de militares corruptos e sanguinários que a Casa Branca semeou na América Latina.  O major, curiosamente, pertencia a um partido chamado Arena, não escondia sua simpatia por Hitler e, numa antecipação do ex-capitão Jair Messias Bolsonaro, defendia a tese de que “só matando umas 300 mil pessoas haveria paz em El Salvador”.  Outra curiosidade ou coincidência: Reagan presidiu a guilda dos atores de Hollywood no final dos anos 1940, auge da disputa entre os sindicalistas da Iatse, mais ligada ao patronato, e a CSU (“de esquerda”), com o macarthismo preparando seu primeiro bote.  O que fez o galã da Warner romper de forma tão drástica com a administração Roosevelt? Nada relevante. Ele apenas se deixou envenenar pela propaganda anticomunista manipulada por republicanos e democratas desde, pelo menos, meados de 1938, quando o congressista texano Martin Dies, do Partido Democrata, antecipou a caça às bruxas, dedurando dois dos mais fecundos projetos culturais do New Deal, o Federal Theater e o Writer’s Project, como “viveiros de comunistas”.  Em 1982, após cinco anos no ar, Lou Grant aposentou-se compulsoriamente e Asner seguiu carreira como ator e dublador. Foi Papai Noel, Papa (João 23) e o financista bilionário Warren Buffett, mas é como o chefão de Mary Tyler Moore na MTM e dos repórteres do Los Angeles Tribune que nos lembraremos sempre dele.

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