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Ausentes presentes

Memoriais como o dedicado às vítimas do voo 3054 ajudam a sociedade a se reapropiar do que a morte indevidamente levou

Por José de Souza Martins
Atualização:

É corrente a suposição de que nós brasileiros não temos memória histórica, desinteressados das grandes ocorrências do nosso destino e até mesmo descuidados da preservação dos nossos monumentos e dos marcos de nossa trajetória. Isso tudo é relativo. Nas últimas décadas vem crescendo o interesse pela materialização monumental do que diz o que fomos para dizer-nos quem somos, ainda que memória irregular, porque não há equivalência entre os fatos celebrados e nem sempre são eles relevantes na constituição de nossa identidade coletiva. Nossa memória ainda se ativa em função da dor e do sentimento de perda, como extensão das celebrações funerárias.

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A inauguração da praça memorial alusiva aos mortos na queda do avião da TAM, em 17 de julho de 2007, só aparentemente é exceção aos nossos costumes, cujo significado não vem espontaneamente às lembranças. Aquela praça é, na verdade, um cemitério. Esses lugares acabam sendo destacados nos ritos populares de visitas, deposição de flores, afixação de bilhetes, como ali já vinha acontecendo desde o acidente. São, na prática, memoriais, no pleno sentido da palavra.

Essas deposições, ao pé de algum lugar referencial de injusta interrupção da vida, são comuns na Europa e nos EUA, como expressões secularizadas do luto. Indicam um modo de lidar com a morte inesperada para suturar e superar o rompimento que ela representa. O memorial materializa o intento de que, como lembrança, os que se foram permaneçam além dos momentos emocionais da partida. São contraposições simbólicas aos perecimentos drásticos, à contrariedade do inesperado. São também manifestações da responsabilidade social dos vivos pelos que morreram em condição adversa, em público, fora dos parâmetros socialmente aceitos do morrer, no âmbito do privado e da família. No memorial, a sociedade se reapropria do que a morte indevidamente invadiu.

Maurice Halbwachs, um dos expoentes dos estudos sociológicos sobre a memória, ele mesmo morto num campo de concentração e, portanto, no anonimato de um perecimento injusto, refere-se à topografia da memória. Estendida aos dias de hoje, a cultura dos lugares da memória ressalta esse nós coletivo ameaçado pelo individualismo e pela solidão dissolventes da modernidade. A sociedade moderna criou uma concepção de identidade que é restritiva, limitada à vida, em conflito com os arcaísmos e a religiosidade, que sobrevivem nos gestos de afeto coletivo. Os lugares da memória são expressões de uma poderosa visão comunitária do mundo e da vida que a modernidade não venceu.

Os memoriais, populares e oficiais, existem no Brasil, ainda que não necessariamente sob esse nome. No bairro paulistano da Liberdade, a Capela de Santa Cruz das Almas e dos Enforcados é nosso memorial das almas. Erguida a poucos metros de onde existiu a forca, no século 19, surgiu ao redor de uma cruz ao pé da qual os devotos acendiam velas, e continuam acendendo. O culto se robusteceu com a morte de um inocente, Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, ali enforcado. As cruzes de beira de estrada são memoriais do mesmo gênero, para demarcar o lugar em que alguém teve a vida abreviada, para suprir a solidão de quem ali pereceu.

Memorial é também, embora não com esse nome, o obelisco erguido por Galileo Emendabili no Parque Ibirapuera, em memória dos mortos da Revolução de 1932. Ali estão reunidos e sepultados, na trincheira simbólica da cripta, os que perderam a vida pelos valores transcendentes da democracia.

A antiga estação da Sorocabana, onde por muitos anos funcionou o Dops, lugar de tortura e confinamento de presos políticos, abriga o Memorial da Resistência. É ocupação simbólica de um lugar de sofrimento e de tolhimento da esperança. Proclamação de que o mal não pode triunfar sobre o bem.

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O Memorial da América Latina é secular. Mas a mão espalmada, de concreto, concebida por Oscar Niemeyer, na palma esculpido em baixo relevo e revestido de acrílico vermelho o mapa da América Latina, como sangue que escorre pelo punho, filia-o à tradição funerária dos memoriais. Referência alegórica ao sacrifício da conquista, de escravos, índios e negros. Influência notória da busca de identidade latino-americana na herança de misérias e opressões. É também, no entanto, uma proclamação de esperança. No Rio de Janeiro, o Monumento Nacional aos Mortos na 2ª Guerra Mundial abriga os restos mortais de 462 pracinhas brasileiros que estavam sepultados no Cemitério da FEB em Pistoia, na Itália. É um memorial, embora o cemitério original seja mantido como era, no bucólico cenário campestre do primeiro sepultamento, o que indica a complexa mediação da morte em questões assim.  

JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO. PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E ORGANIZADOR DE A MORTE, OS MORTOS NA SOCIEDADE BRASILEIRA (HUCITEC)

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