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Autores que inspiraram a literatura fantástica têm obras lançadas no Brasil

Clássicos de George MacDonald, Selma Lagerlöf e Novalis permitem o leitor vislumbrar o percurso intelectual da fantasia, de Tolkien e C.S. Lewis a Neil Gaiman e N.K. Jemisin

Por André Cáceres
Atualização:

“Que objeto estranho um espelho é! E que magnífica afinidade existe entre ele e a imaginação humana! Pois este meu aposento, enquanto o vejo no espelho, é o mesmo e, ao mesmo tempo, não é. Não constitui a mera representação do lugar onde moro, mas parece que estou lendo a sua descrição em um livro cuja história me agrada.” Assim fala Cosmo, personagem de um livro dentro de outro, Phantastes (1858), clássico do escritor escocês George MacDonald. Este é um entre três livros publicados recentemente no Brasil que influenciaram a literatura fantástica de J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis e ajudam a traçar um percurso intelectual da fantasia.

O escritor e sacerdote escocês George MacDonald, autor influente para a literatura fantástica Foto: Thomas Nelson

Phantastes, lançado pela editora Thomas Nelson, narra a jornada do jovem Anodos pela Terra das Fadas depois que ele acordou e viu seu quarto metamorfoseado: a banheira transbordava um riacho, o tapete havia dado lugar a um gramado que margeava as águas e as plantas estampadas em sua cortina balançavam com a brisa de uma floresta. Nessa terra onírica habitada por seres extraordinários como ogros, árvores vivas, fadas, gigantes e estátuas móveis, Anodos passa por sucessivas provações. “Mas ninguém vem aqui a não ser por alguma razão, seja ela conhecida pela própria pessoa ou por quem a comanda”, informa uma das muitas mulheres misteriosas que ele encontra pelo percurso. A obra é narrada em primeira pessoa, com relatos bastante impressionistas dos estranhos acontecimentos. Mas Anodos reconhece que “não há nenhuma utilidade em tentar explicar as coisas no Reino das Fadas, e quem viaja para lá logo aprende a abdicar da ideia de fazê-lo e aceita tudo como é, como uma criança que, em uma condição crônica de deslumbramento, não se surpreende com nada”. A certa altura, Anodos entra em uma cabana onde encontra um armário aparentemente banal, mas que se abre para um mundo de escuridão, de onde uma sombra sai e passa a persegui-lo pelo resto do livro. Além da inspiração que futuramente serviria para o guarda-roupas d’As Crônicas de Nárnia, a sombra – que se assemelha aos espectros-do-anel d’O Senhor dos Anéis – exerce certo fascínio sobre o personagem, como o Um Anel corrompe os personagens de Tolkien: “Entretanto o mais assustador de tudo é que nessa época comecei a sentir algo como satisfação na presença de minha sombra”, confessa Anodos. Outro ponto de convergência entre as obras é a maneira pela qual o acesso ao sublime é facultado ao leitor apenas de modo indireto. Canções, encantamentos e poemas são entoados, mas nunca citados ipsis litteris, o que eliminaria a transcendência: “Cantei algo como o que segue, mas as palavras constituem apenas uma grosseira representação de um estado cuja própria elevação impedia a possibilidade de ser lembrado e no qual, creio eu, os termos empregados estavam muito acima destes”. 

Ilustração de Tolkien retrata Taniquetil, montanha em Valinor onde habitam os Valar, seres similares a deuses em sua obra Foto: HarperCollins

Um dos aspectos da obra de MacDonald que mais influenciou a fantasia de modo geral é a relação umbilical com a natureza. Quando Anodos se perde na floresta, ele é compelido a deixar que seus instintos o guiem em consonância com o mundo natural: “Parecia saber escolher melhor que direção tomar quando surgia uma dúvida. De algum modo, passei a sentir o que os pássaros queriam dizer em seus cantos, embora não pudesse expressá-lo em palavras, não mais do que se pode fazer com paisagens.” Essa aura bucólica que retrata a natureza sempre em tom positivo e como uma sabedoria primordial é replicada em Tolkien, que sempre representa a derrubada de árvores como indício de uma ação maligna. No entanto, esse elemento é subvertido por outro livro recém-lançado que teve papel essencial para o surgimento da fantasia: A Saga de Gösta Berling (1891), da sueca Selma Lagerlöf, primeira mulher laureada com o Nobel de Literatura, em 1909. 

A atriz Greta Garbo foi lançada ao estrelato na adaptação de 'A Saga de Gösta Berling', em 1924 Foto: The Criterion Collection

A obra, que chega ao Brasil pela editora Carambaia, narra a vida do ex-clérigo Gösta Berling, forçado a largar a batina por causa do álcool. Ele acaba se tornando cavalheiro de uma corte afastada, na região natal da autora. A despeito do enredo semelhante em estrutura a outros romances da época, o livro rompe com o realismo predominante até então e traz elementos sobrenaturais entremeados ao cotidiano. Os aspectos mágicos partem da natureza e acossam os homens nos vilarejos dessa Suécia rural. “A bruxa aparece durante o crepúsculo na floresta, entoa canções mágicas nos ouvidos dos homens e enche-lhes o coração de pensamentos odiosos. A partir disso surge um medo paralisante, que torna a vida pesada e obscurece a beleza de paisagens sorridentes. A natureza é má, insidiosa como uma serpente adormecida, não é uma coisa em que os homens possam confiar.” Na obra de Lagerlöf, os animais reais são carregados de uma aura que mescla fantasia ao horror gótico: há um urso que só pode ser morto por uma “bala de prata e metal de sino, fundida em uma tarde de quinta-feira no campanário da igreja, durante a lua nova”. Linces não podem ter seus nomes pronunciados de dia senão aparecem à noite para devorar os rebanhos de galinhas dos fazendeiros.  E, diferente de MacDonald, a natureza não é retratada como essencialmente boa, ou pelo menos, como favorável aos seres humanos: “Não confies no musgo, não confies na urze, não confies nas pedras lisas no sopé da montanha: a natureza é má, controlada por forças invisíveis que têm ódio dos homens.”  Essa ruptura pode ser explicada pelo viés religioso dos autores. Enquanto MacDonald foi teólogo e ministro cristão, chegando a ser perseguido por suas convicções, sendo acusado de “estar contaminado com a teologia germânica”; Lagerlöf abandonou a religião de sua infância em prol de uma fé mais ampla e menos dogmática. No entanto, ambos foram influenciados em grande medida pelo romantismo alemão – o que talvez explique as inclinações germânicas na fé de MacDonald –, mais especificamente pela obra do poeta, místico e filósofo Georg Philipp Friedrich von Hardenberg (1772-1801), conhecido pelo pseudônimo Novalis. Um de seus principais trabalhos, Pólen, que reúne fragmentos literários, máximas, poemas e escritos diversos, está sendo publicado pela editora Iluminuras. Em meio ao chamado Século das Luzes, Novalis questionou a ênfase no racionalismo por meio da linguagem não realista: “A fantasia põe o mundo futuro seja na altura, ou na profundeza, ou na metempsicose, em relação a nós. Sonhamos com viagens através do todo cósmico: então o universo não está dentro de nós?”, escreve ele em um dos fragmentos de Pólen.  O movimento romântico, do qual Novalis foi uma figura ilustre embora breve, graças à morte precoce, criticava a laicização da vida proposta pelos iluministas e sua consequente destruição de um mundo místico, mediado pela percepção sobrenatural da existência. Desse embate advém o senso de nostalgia de um passado medieval e puro, com enfoque na emoção acima da razão materialista, em harmonia com a natureza e com as forças mágicas, como se enxerga na literatura fantástica influenciada por Novalis. O pensamento de Novalis não só explica a recusa do realismo, mas pode ser lido claramente na obra de MacDonald, que escreve em Phantastes achar preferível “que a arte resgate a natureza de nossos sentidos fatigados e fartos e a degradante injustiça do nosso dia a dia”. No entanto, a carga conservadora – e, em última instância, anti-intelectual – da obra de Novalis foi sendo galvanizada em direções inesperadas pelas gerações seguintes de autores de fantasia.  Aluno de MacDonald, Lewis Carroll subverteu a busca por um mundo ordenado e puro em sua obra-prima surrealista, Alice no País das Maravilhas; Lewis e Tolkien, embora reconhecessem a grande influência do autor de Phantastes em suas obras, acabaram se contaminando pelos acontecimentos do século 20 para fornecer novos ideais de fantasia; mais recentemente, escritores como Madeleine L’Engle, Neil Gaiman, J.K. Rowling e N.K. Jemisin usaram a literatura fantástica para expressar visões mais progressistas de mundo, em contraste com a genealogia de suas obras. O instigante percurso intelectual pelo qual a fantasia passou nos últimos três séculos pode ter transformado radicalmente as visões que originaram esse gênero, mas uma coisa se mantém intacta e não deve esmorecer: o senso de maravilhamento provocado por essas histórias. Com a palavra, George MacDonald: “Por que todas as reflexões são mais atraentes do que aquilo que chamamos de ‘realidade’? Talvez não tão tremendas e poderosas, mas sempre mais fascinantes? (...) Todos os espelhos são mágicos. O mais simples aposento torna-se um poema quando eu o vejo através do espelho.”

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