Aviso prévio para sair do improviso

Jogos serão oportunidade para Brasil cortar a tradição da falta de planejamento

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Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

Foi como uma cobrança de pênalti bem batido em final de campeonato. Primeiro veio o murmúrio dos lábios rezando baixinho. Seguiu-se o silêncio paralisante da apreensão. E então a explosão arrebatadora e balsâmica da vitória. Assim terminou, na sexta-feira, em Copenhague, estimados R$ 100 milhões depois, a campanha brasileira pela realização dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro. Pela primeira vez, um país da América do Sul organizará uma Olimpíada. Motivo de pulos e lágrimas de alegria para a numerosa delegação brasileira na capital dinamarquesa e boa parte da nação canarinho.

 

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O Rio fez bonito em sua candidatura. Filme emocionante dirigido por Fernando Meirelles, discurso do presidente Lula comparando os anéis olímpicos à miscigenação do povo brasileiro, promessas de investimentos de R$ 28,8 bilhões e um projeto que, se saltar do papel, tem potencial para ajudar a capital mais bela do País a reduzir seus problemas. Ok, Paulo Coelho jantando com as mulheres dos delegados do Comitê Olímpico Internacional e prometendo plantar bananeira em Copacabana no caso de vitória carioca fica fora dessa boniteza. Mas não é isso que preocupa o historiador Hilário Franco Júnior, professor aposentado da USP, autor de Futebol, Sociedade e Cultura (Cia. das Letras) e analista das questões socioesportivas mundiais.

 

Amparado na experiência do Pan-Americano de 2007, que custou dez vezes mais que o previsto, seu ponto é claro: "Temer o desvio de dinheiro público sob o pretexto dos jogos não é neurose, é simples conhecimento da história nacional". De Paris, onde realiza pesquisa para um futuro livro sobre utopias medievais, Franco Júnior falou ao Aliás a respeito de pressões políticas e econômicas na história dos jogos e também o que uma Olimpíada em casa representará para um Brasil monoesportista. A seguir, trechos da entrevista:

 

Como o sr. avalia a vitória do Rio?

 

Ela indica só o início de uma etapa de muito trabalho e necessidade de responsabilidade na gerência e utilização dos recursos. Se por um lado a Olimpíada pode ser um bom laboratório para o Brasil mostrar que não é só o país do futebol e do samba, por outro pode ser um mero reforço de outra imagem histórica que nos acompanha: a de país da corrupção. Não sei se estou sendo maldoso ou se já estudei muito a história, mas não vejo a Olimpíada como um evento capaz de alavancar o desenvolvimento do País ou do Rio de Janeiro. Eu a vejo mais como outra oportunidade de uso de dinheiro público por quem está no poder. Isso já aconteceu nos Jogos Pan-Americanos de 2007, também no Rio. O orçamento inicial explodiu quase dez vezes. Ou é muita incompetência matemática ou esse dinheiro se perdeu pelo caminho.

 

Seria melhor o Rio ter perdido?

 

A derrota não seria motivo para decepção. O País tem uma série de problemas mais importantes a resolver antes de tratar de uma questão esportiva. A derrota significaria a não canalização de recursos escassos para algo não prioritário. Esses mesmos recursos - que existem, pois um investimento de quase R$ 30 bilhões já foi anunciado - ficariam liberados para aplicação em saúde, transporte, segurança.

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Barack Obama saiu derrotado?

 

Logo após o anúncio da desclassificação de Chicago, a Fox News (emissora de TV americana anti-Obama) já dizia que era o começo do declínio do império americano. Um absurdo. A derrota de Chicago será pretexto para a direita americana bater um pouco mais em Obama. Mas qualquer cidadão razoavelmente informado sabe que a culpa dele é zero. Seria personalizar um evento no qual a figura de um presidente é apenas um item da lista de critérios técnicos a que o Comitê Olímpico Internacional, embora sujeito a pressões, deve obedecer.

 

Então, nem o prestígio internacional do presidente Lula contou?

 

Essa história de prestígio internacional do Lula é exagero da mídia brasileira. No exterior não existe isso. O que o Lula tem é sorte e, com seu jeitão simplório, sua história de vida de metalúrgico que virou presidente, goza de muita simpatia no exterior, assim como o Brasil, que é visto como país pacífico, acolhedor e dono de grande potencial.

 

Essa simpatia beneficiou o Rio?

 

Pouco. Acredito que tenha contado mais o aspecto geopolítico dos jogos. Os EUA já organizaram quatro Olimpíadas. Dar a vitória a Madri seria repetir os jogos na Europa depois de Londres-2012. Dá-la a Tóquio significaria um intervalo pequeno entre países asiáticos, já que tivemos Pequim-2008. O rodízio de continentes e o ineditismo dos jogos na América do Sul favoreceram o Rio.

 

A Olimpíada será capaz de transformar a realidade do Rio?

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Como historiador não tenho razões para acreditar nisso, se entendermos por transformação algo mais profundo que a construção de instalações esportivas. Tudo depende de uma série de precondições culturais, sociais, políticas e econômicas. Nenhum povo vai se tornar mais educado, nenhuma tensão social vai desaparecer, nenhuma moralidade política vai se desenvolver, nenhum crescimento econômico sustentado vai começar porque haverá Jogos Olímpicos em determinado local. Do ponto de vista esportivo, não acredito que uma conjuntura seja tão forte para mudar uma estrutura.

 

Do ponto de vista da infraestrutura, pode haver melhorias?

 

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Nesse caso, sim. Em Barcelona (1992), a paisagem urbana foi bastante alterada, para melhor, graças ao estímulo dos jogos. Mas aí contou o forte orgulho regionalista catalão, o desejo de mostrar ao mundo e à Espanha sua capacidade organizativa. Mas o benefício é sempre uma incógnita. Se o objetivo é de curto prazo, maquiar a cidade e obter divisas do turismo, o empenho não compensa. Se for de longo alcance, se torna interessante: quem não sonha com o controle urbanístico da favelização, a diminuição do crime, a Baía de Guanabara despoluída e uma rede de metrô cobrindo toda a cidade e sua periferia?

 

No caso do Rio, em qual desses desfechos o sr. Aposta?

 

O Brasil desde sempre tem uma visão curta das coisas. É o país dos imediatismos. Brasília, por exemplo, foi nossa grande tentativa nacional de planejamento. Quarenta anos depois, aquilo é uma tragédia urbanística, uma cidade mal planejada. Nós não temos a cultura do longo prazo, do planejamento. Temos é a cultura da improvisação: esperamos o problema aparecer e aí vamos tentar dar um jeito. A grande lógica gerencial, capitalista, é de antecipar os problemas. Antes de eles aparecerem, você já deve ter estratégias montadas para enfrentá-los, e com grande possibilidade de dizer que tipo de problema vai acontecer. Não temos isso em nossa cultura.

 

De onde vem essa característica brasileira?

 

É resultado da nossa formação histórica. Surgimos de um país, Portugal (e ele não é diferente do restante da Península Ibérica), que se moldou historicamente em uma situação de luta constante com os muçulmanos, que o ocuparam por séculos. Nada podia ser programado porque tudo dependia das circunstâncias de dominação. E as fronteiras entre o Portugal cristão e os territórios muçulmanos eram fluidas. Encolhiam e avançavam, criando a necessidade de estar constantemente ao sabor de um planejamento que não dependia de si mesmo, mas do outro. Isso se solidificou na medida em que encontrou eco aqui nas terras novas, onde a população indígena também mantinha a tradição do improviso: "Estou com fome, vou ao rio, pesco e como. Não vou enfrentar inverno rigoroso, portanto não preciso organizar a plantação com antecedência nem estocar comida". E há um terceiro elemento, os africanos, que, como exilados e prisioneiros, não podiam ter nenhuma visão de longo prazo. Ao longo de meio milênio isso criou a nossa cultura do improviso. Como mudar? Olhando menos para o próprio umbigo, assumindo responsabilidades, sendo mais coletivista e menos individualista e não esperando que um grande evento esportivo de um mês de duração seja capaz de reverter uma condição de 500 anos.

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Existe algum orgulho nacional envolvido no desejo de receber uma Olimpíada?

 

No Brasil, acho pouco provável. A Copa do Mundo de futebol de 2014 pode alimentar esse orgulho, pois temos chances legítimas de pensar no título. Mas somos um país monoesportivo. Pagar para centenas de pessoas com camiseta do Banco do Brasil torcer pelos nossos atletas em uma Olimpíada não é orgulho nacional, é marketing. Como temos pouca tradição na maioria das modalidades olímpicas, duvido que sediar os jogos desperte grande entusiasmo. Mas é preciso reconhecer que eles podem desenvolver a cultura esportiva brasileira, apresentar ao público local esportes pouco conhecidos e até despertar vocações.

 

Mas os grandes momentos do esporte brasileiro, como os de Gustavo Kuerten no tênis e Cesar Cielo na natação, nunca são suficientes para alavancar o esporte. Por que nossas conquistas são inócuas?

 

Porque são movimentos individuais, circunstâncias isoladas que favorecem o indivíduo e não o esporte nacional. Quantas décadas separam Maria Esther Bueno de Guga, ou Éder Jofre de Maguila? Não dá para falar em tênis nacional, em natação nacional no Brasil. Um esportista de destaque a cada meio século nada tem a ver com política ou cultura esportiva. A única modalidade que apresenta gerações consecutivas de sucesso é o futebol.

 

Por quê?

 

É o esporte que melhor corresponde a essa mentalidade nacional do improviso. A essência do futebol é enganar o adversário. Joga-se futebol com tampinha de garrafa morro acima. No tênis você não pode pegar uma bolinha de pano e ficar brincando descalço no meio da rua. Você precisa de um terreno plano, uma raquete, uma rede, enfim, de determinadas condições materiais, que, por sinal, elitizam o esporte. Afora o futebol, sem um plano sério de desenvolvimento esportivo nacional somos meros dependentes de circunstâncias especiais e do acaso, que propiciam, de 50 em 50 anos, o aparecimento de um Éder Jofre, de um Guga, de um Cielo. Não é um bom momento em determinado esporte que deve definir a política esportiva. Muitas vezes esse bom momento gera entusiasmos apenas passageiros, enquanto construir as instalações necessárias, formar professores da modalidade e bem gerir esse conjunto é tarefa longa, completada apenas quando o tal entusiasmo passou. A estratégia deveria ser inversa: diagnosticar a situação atual em cada modalidade, as aptidões em cada região e investir de forma correspondente e suficiente. Seria mais lógico e o resultado menos aleatório criar uma vocação olímpica primeiro e pleitear uma Olimpíada depois.

 

Ao resumir por que era contra a realização dos jogos no Rio, um comentarista esportivo brasileiro disse que o lema do barão de Coubertin ("o importante é competir") seria subvertido para "o importante é construir". Quanto de pressão econômica está por trás dos esforços para se sediar uma Olimpíada?

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Não tenho dúvida de que em certos locais - e o Rio é um deles - ela está na origem do desejo de sediar os jogos. As grandes empreiteiras fazem seu lobby, o setor turístico exalta os benefícios trazidos pelo evento, embora seja simplista e ingênua a equação Olimpíada = exposição na mídia internacional = retorno dos investimentos. E por que não suspeitar que os políticos veem nisso mais uma oportunidade de usufruir o dinheiro público? Naturalmente, não é um evento em si que gera corrupção, é a cultura da corrupção que se aproveita de eventos que movimentam muito dinheiro. Temer o desvio de dinheiro público sob o pretexto dos jogos não é neurose, é simples conhecimento da história nacional.

 

Há interesses políticos também?

 

É óbvio que a Olimpíada no Rio deverá ser usada como arma de propaganda das grandes realizações do governo Lula, seja por seus herdeiros políticos, seja por ele mesmo, pois me parece clara a sua pretensão de voltar ao poder lá na frente. Quais serão as bandeiras dessa futura campanha de Lula? Bolsa-Família, Copa de 2014 e Olimpíadas de 2016. A campanha do Rio fez parte de um projeto político. Mas não foi a primeira vez.

 

O sr. se refere aos boicotes aos jogos durante a Guerra Fria, acusados de matar o espírito olímpico?

 

Também. Os boicotes estavam inseridos no seguinte pensamento: mostrar, por meio do número de medalhas, a superioridade de um sistema político, o capitalismo americano ou o comunismo soviético. O espírito olímpico, contudo, estava morto havia tempo. Os jogos de Berlim em 1936 foram o primeiro indício claro. Ali houve quase um "remorso" dos aliados pelos castigos aplicados à Alemanha após a 1ª Guerra. Permitir a Olimpíada em Berlim era tirar a Alemanha da cruz. Foi uma questão diplomática. E, uma vez realizados, os jogos ainda serviram de propaganda e manobra nazista. Mas também é verdade que no começo do século 20 as Olimpíadas de Paris (1900) e Londres (1908) já estavam ligadas a questões políticas. Eram duas nações imperialistas tentando demonstrar qual o idioma mais importante, a literatura mais importante, as terras além-mar mais importantes, as invenções, as descobertas científicas. Nesse cenário de disputa pela hegemonia mundial, o esporte desempenhou um papel político quando as duas capitais brigaram, inclusive, pelo direito de sediar a Olimpíada. Já a realização dos jogos em Atlanta em 1996 se deu por pressão econômica. Era o centenário dos jogos modernos, por isso deveriam ser feitos em Atenas, onde nasceram na Antiguidade e renasceram em 1896. O espírito olímpico pedia isso. Mas o poder econômico da Coca-Cola, cuja sede fica em Atlanta, arrastou o evento para os Estados Unidos. A Grécia, obviamente, não teve condições de competir.

 

O espírito olímpico sobreviveu à globalização?

 

Não creio. A mercantilização de tudo o que ocorreu nas últimas décadas não poderia poupar o esporte, mesmo à custa dos valores esportivos. O escândalo que envolveu a equipe Renault na Fórmula 1 é um bom exemplo recente. Como os próprios organizadores não quiseram dispensar os recursos da escuderia, ela foi poupada (suspensão de dois anos... com sursis) e apenas dois indivíduos foram sacrificados.

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Esse mercantilismo está presente nos crescentes casos de doping?

 

O doping existe desde a Antiguidade. Ele teria origem religiosa, como propôs o estudioso italiano Maurizio Zerbini no livro Alle Fonti del Doping (As fontes do doping, sem tradução no Brasil), de 2001. Segundo ele, os atletas da Grécia Antiga usavam óleos para massagem e ingeriam certas substâncias pensando que elas pudessem melhorar seu desempenho. Mas o fundo era religioso. Os jogos ocorriam em honra aos deuses do Olimpo. A preparação envolvia períodos de jejum, orações, etc. Vencer uma prova era, portanto, honrar aos deuses, tornar-se um herói, aquele humano que segundo a mitologia se aproxima da condição de deus, podendo, inclusive, ser divinizado após a morte. Ocorre que a eficácia desse doping era mais simbólica - ou psicológica, diríamos hoje - do que fisioquímica. O que temos hoje é a conjunção do conhecimento de um enorme leque de substâncias dopantes com um enorme conjunto de interesses econômicos. A recompensa do atleta antigo que se dopava era honorária. A do moderno são os honorários.

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