Biografia de Galileu Galilei mostra o perigo do obscurantismo

Vida do fundador da ciência moderna é um exemplo de como a oposição entre razão e fé é perigosa

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Por Stephen M. Barr
Atualização:

O “processo Galileo” continua a fascinar e a provocar depois de 400 anos. Sob um aspecto foi um caso simples e, ao mesmo tempo, muito complicado. Simples quanto ao seu resultado. O grande fundador da ciência moderna foi julgado, declarado culpado e condenado à prisão domiciliar perpétua pela Igreja Católica por defender a ideia de que a Terra gira em torno do Sol, e foi forçado a se retratar sob juramento. Este crime contra a liberdade de pensamento, pesquisa e consciência nunca deixou de chocar.

Galileu Galilei retratado por Justus Sustermans Foto: National Maritime Museum

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A questão complicada é como e porque isso ocorreu. Não foi inevitável. Santo Agostinho já alertava eloquentemente no século 4 contra a interpretação das Escrituras contrariamente ao que se sabia com certeza por meio da razão e da experiência. Este era um princípio bem estabelecido, aceito pelo Cardeal Bellarmine, o maior teólogo da igreja, que reconheceu numa famosa carta a um dos amigos de Galileo que “se houvesse uma real demonstração de que a terra gira em torno do Sol, então seria necessário explicar com muito cuidado as Escrituras que pareciam mostrar o contrário, e é preferível afirmar que não as entendemos em vez de dizer que o que está demonstrado é falso”.

O processo de Galileo envolveu uma interação de ideias científicas antigas e novas, exegese bíblica, posições filosóficas e teológicas arraigadas, batalhas intelectuais, rivalidades acadêmicas, personagens falaciosos, choques de personalidade e política eclesiástica e secular, tudo isto transcorrendo por duas décadas no clima febril da disputa entre a Reforma e a Contrarreforma e a Guerra dos 30 Anos. 

Poucos episódios históricos são mais repletos de sutilezas, ironias e ambiguidades como este. Para relatá-lo adequadamente é necessário possuir um conhecimento fora do comum e o dom de um grande narrador. Felizmente Mario Livio está bastante equipado para realizar a tarefa. Em Galileo: And the Science Deniers, seu domínio não só da ciência, o que é esperado de um astrofísico, mas do contexto histórico e cultural, é impressionante. E impressiona ainda mais é a sua compreensão relativamente sofisticada dos argumentos e temas teológicos.

Para dar um exemplo, ele identifica cuidadosamente como um erro crucial a interpretação abrangente do Cardeal Bellarmine de uma regra estabelecida pelo Concílio de Trento para enfrentar o desafio do protestantismo. A regra proibia a interpretação de passagens da Escritura de maneira contrária ao consenso dos primeiros pais da igreja “em assuntos de fé e moral”. Galileo, de modo muito racional, argumentou que, como a astronomia não pertence à fé ou à moral, a leitura literal pelos pais fundadores da igreja de algumas passagens não precisava ser seguida. 

Mas Bellarmine rejeitou esta afirmação, usando um argumento circular. Simplesmente adotou a interpretação mais literal daquelas passagens, que logicamente sugeriam que as noções astronômicas implícitas nelas eram interpretadas oficialmente pela Escritura e, portanto, “eram questões de fé”, e isto exigia que fossem interpretadas literalmente nos termos do decreto de Trento. Livio corretamente qualifica este equívoco de Berllarmine de uma “bomba” teológica. O literalismo extremo que ele forçou não constava de uma regra da igreja anteriormente e nem depois.

Mesmo assim, uma prova do movimento da Terra teria forçado uma leitura menos literal, como Bellarmine reconheceu. Infelizmente ela era inviável naquela época. Galileo tinha prova, a partir das suas descobertas telescópicas, de que a teoria geocêntrica de Ptolomeu, no século 15, estava errada, o que foi rapidamente confirmado pelos astrônomos jesuítas do Collegio Romano e outros, e a teoria de Ptolomeu foi abandonada. Mas as descobertas de Galileo não foram suficientes para provar que a tese de Copérnico era correta e que a Terra movia porque havia uma terceira teoria respeitável no mercado, proposta anos antes pelo grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe.

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No modelo de Tycho, os planetas giram em torno da órbita do Sol, mas o Sol gira em torno da órbita de uma Terra parada. Este modelo era perfeitamente coerente com todas as observações daquela época. Ele evitava não apenas problemas com a Escritura, mas também era uma objeção importante à teoria de Copérnico, ou seja, a falha em ver a “paralaxe estelar (os leves deslocamentos aparentes de estrelas distantes que seriam causados pelas mudanças de posição da Terra à medida que orbita em torno do sol). Este efeito só foi observado em 1838.

O debate científico entre os defensores dos modelos de Copérnico e Tycho continuou muito tempo depois da morte de Galileo e envolveu argumentos científicos sofisticados de ambos os lados. Um consenso científico definitivo de que a Terra se movimenta só ocorreu quando Isaac Newton descobriu as leis da gravidade e do movimento no final do século 17.

Quase no final do seu livro e em muitos parágrafos, Lívio traça paralelos entre os oponentes de Galileo e os “negadores da ciência”, que é o subtítulo do livro, que são os antievolucionistas. os fundamentalistas e os céticos do aquecimento global. E, ao contrário dos que hoje negam a tese evolucionista, dos que estão fechando bem os seus olhos para evidências irrefutavelmente científicas, os defensores da tese de Ptolomeu a abandonaram imediatamente quando confrontados com as descobertas de Galileo, que passaram a adotar. A teoria de Tycho, que era bastante viável e cientificamente respeitável até Newton, foi abandonada.

O fato de Livio enveredar ocasionalmente para a didática, mesmo para a homilética,pode desviar a atenção ou irritar alguns leitores. O que não diminui o valor do livro, que narra a história de Galileo de uma maneira perceptiva, esclarecedora e equilibrada.

Tradução de Terezinha Martino

Barr é professor emérito de física de partículas na universidade de Delaware e presidente da Sociedade de Cientistas Católicos

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