Biografia de Nietzsche corrige distorções nazistas

Irmã do filósofo foi casada com supremacista ariano e promoveu desserviço em sua obra

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Por Rodrigo Petronio
Atualização:
Friedrich Nietzsche retratado postumamente por Edvard Munch, em 1906 

A vida e os escritos de Nietzsche (1844-1900) sofreram diversas deturpações ao longo do século 20. Dentre outros fatores, estão as intervenções de sua irmã. Embora criadora do Arquivo Nietzsche, Elisabeth Förster-Nietzsche é considerada uma das principais responsáveis por essas adulterações. Provavelmente agia sob influência do marido, Bernhard Förster, ideólogo do antissemitismo e fundador da Nova Germânia, colônia situada no Paraguai e destinada a uma “raça pura”. 

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Desde então, os principais trabalhos editoriais se esforçaram para dirimir esses problemas e oferecer uma visão fidedigna da vida e da obra do filósofo. Nessa chave estão a edição comentada de Karl Schlechta (1956) e a monumental edição crítica de Giorgio Colli e Mazzino Montinari (1967), trabalho concluído apenas nos anos 1980. Em relação à biografia, Richard Blunck concebeu um amplo projeto cujo primeiro volume saiu do prelo em 1953. 

Antes de sua morte, em 1962, Blunck legou a continuidade do trabalho ao musicólogo suíço Curt Paul Janz, que o concluiu em 1978. O resultado é excepcional: uma caixa em três tomos intitulada Nietzsche: Uma Biografia, publicada pela primeira vez no Brasil pela Editora Vozes. Com prefácio de Oswaldo Giacoia Júnior, um dos maiores especialistas na obra do criador de Zaratustra, é um dos estudos exegéticos mais abrangentes sobre a vida e a obra do filósofo. 

Janz segue a cronologia e a divisão por fases. O primeiro volume se ocupa dos anos de infância e juventude até a década na qual Nietzsche atua como professor de filologia na Basileia (1869-1879). O afastamento da vida acadêmica deu ensejo a uma verdadeira revolução. Adentramos a década na qual foram concebidas e concluídas quase todas as obras decisivas (1879-1888), abordada no volume dois. Por fim, o volume três descreve a doença, a loucura e a morte (1889-1900), além de trazer um farto levantamento de documentos, remissões e iconografias. 

Uma das virtudes de Janz é mostrar passo a passo a formação intelectual desse filho de pastor protestante, que desde os primeiros estudos no liceu de Pforta se interessa por ciências naturais, música e estudos clássicos, e idolatra Shakespeare, Byron e Hölderlin. A descoberta da obra de Schopenhauer em 1865 também teve um efeito poderoso. Efeito semelhante ocorreu com a descoberta das obras de Albert Lange e Kuno Fischer, sobre o materialismo e sobre Kant. Nascia o filósofo dentro de Nietzsche. Um filósofo tímido, ainda hesitante em meio aos estudos dos escombros da Antiguidade, mergulhado em fragmentos de grego e de latim. Entretanto, o impacto tinha sido irreversível.

Essa oscilação agônica entre a filologia (estudo das línguas), a que Nietzsche vai se dedicar como docente ao longo de dez anos, e a vocação para a filosofia é o primeiro eixo da agonística que iria moldar sua obra. O outro vértice desse triângulo foi seu amor pela música, em especial a paixão pela obra de Wagner, da qual fora um entusiasta e um iniciado. A descrição do período de Basileia é perfeita ao retratar as ambiguidades de sua condição. Nietzsche amava os estudos clássicos. E privava da companhia de alguns dos mais eminentes pensadores da época, como Bachofen e Burckhardt. Também fez alguns amigos que atravessaram quase toda sua vida, como o filólogo Erwin Rohde e o teólogo liberal Franz Overbeck. Mas isso não bastava. 

A violenta reação do jovem filólogo Willamowitz-Möllendorff à sua primeira obra, O Nascimento da Tragédia (1871), chama a atenção de Nietzsche para dois aspectos: as mesquinharias da vida acadêmica e a urgência de sua vocação de filósofo livre. A encruzilhada entre a filologia e a filosofia se apresenta. Precipitam-se e pioram os problemas de saúde que o acompanhavam desde a infância. Mais adiante, as crises com Wagner e o afastamento do círculo de Bayreuth se consuma. Afastado da universidade e do universo dos espetáculos, surge o andarilho nômade. Acompanhado apenas de sua sombra. Mergulhado em sua solidão. Surge Nietzsche. 

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São mais de dez anos de escrita ininterrupta de uma das mais potentes obras do pensamento ocidental. Janz demonstra de modo brilhante a importância de personagens como Paul Rée, decisivos para a formulação interna de alguns conceitos. Descreve o zênite de Assim Falou Zaratustra (1885), um poema cosmológico estruturado como sinfonia, concebido como escritura sagrada e gerador de disputas por todos os lados. E mostra também a triste relação de Nietzsche com as mulheres. A despeito da ajuda de sua amiga Malwida von Meysenbug, todas as tentativas de noivado são fracassadas. A paixão correspondida por Lou Andreas-Salomé é o golpe fatal em sua vida amorosa. 

Acompanhamos o isolamento cada vez maior desse estranho personagem em que se transformara Nietzsche, a ponto de não ser mais reconhecido por Rohde, um de seus melhores amigos. As viagens de cidade a cidade em busca de climas bons à saúde; os longos períodos de reclusão; o alheamento da vida social, política e intelectual. Tudo isso imprimiu uma marca definitiva em sua personalidade. Catalisou a tinta e o sangue do escritor e do pensador. 

“Aspiro à minha obra”. Quando se trata de Nietzsche, esta máxima pode se referir tanto à obra escrita quanto à sua vida-obra desse andarilho subjugado pelo pensamento e pela liberdade interior. Nesse sentido, a obra de Janz é prima, ou seja, pode ser vista como primeira nota de uma sinfonia que se desdobra e se encadeia, por dentro e por fora dos livros e da vida desse autor e dessa força da natureza a que convencionamos chamar de Nietzsche. 

*Rodrigo Petronio é escritor, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap

Capa de 'Friedrich Nietzsche: Uma Biografia' 

Friedrich Nietzsche: Uma Biografia Autor: Curt Paul JanzTradução: Markus A. Hediger e Luís M. SanderEditora: Vozes 1.648 páginas  R$ 349

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