Boas intenções de maus samaritanos

Neoliberalismo privou países pobres de meios para crescer, diz sul-coreano

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Por Caio Blinder
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Na sua coluna publicada em 25 de março passado no Financial Times, Martin Wolf, um dos mais influentes comentaristas econômicos do mundo, escreveu que, com a decisão do Banco Central americano de resgatar o Bear Stearns, "morreu o sonho de um capitalismo global de livre mercado". Não dá para ter fé inabalável, à la Adam Smith, na mão invisível do mercado. Dirigismo é preciso. E no seu ato de agonia ideológica, a revista Business Week confessou que "alguma coisa está acontecendo dentro da igreja do livre comércio. As dúvidas estão dando calafrios, assim como o medo de um revés protecionista". O economista sul-coreano Ha-Joon Chang não tem dúvidas que a "hegemonia neoliberal" - o amplo consenso de comércio liberal e mercado livre dos últimos 25 anos - privou países em desenvolvimento de ferramentas valiosas para crescer. Chang não faz uma arenga ideológica ou rancorosa no seu livro Bad Samaritans (Bloomsbury Press, US$ 26,95, 276 páginas). O título decorre da idéia de que boas intenções podem ter resultados desastrosos. Não se trata de má-fé, mas o fato de receitas ministradas pela "nada santíssima trindade" do FMI, Banco Mundial e Organização Mundial do Comércio causarem mais estragos do que consertos. Chang fala com um certo conhecimento de causa. Ele é professor da Universidade de Cambridge, na Grã-Bretanha, ex-pesquisador do Banco Mundial, consultor da "indústria do desenvolvimento" em vários países, inclusive o Brasil, e define o Prêmio Nobel da Economia e crítico da globalização Joseph Stiglitz como "amigo e mentor". No livro, Chang reconhece que a Coréia do Sul (e o livro tem um tom de reflexões pessoais) foi beneficiada pela queda de barreiras no comércio global, mas precisou impor as suas na medida em que a ortodoxia do livre comércio (e mais amplamente do livre mercado) é desastrosa, por constranger as opções de política econômica de países em desenvolvimento. São camisas-de-força como limite na capacidade para regular investimento estrangeiro direto, a obsessão com privatização, restrições ao acesso à propriedade intelectual (ou controle da pirataria, como preferem outros) e excesso de zelo com a estabilidade financeira. Em capítulos fluentes que nos poupam do economês, Chang mistura teoria econômica, história e debates contemporâneos. Muito da munição acadêmica já fora disparada em 2002 no seu livro Kicking Away the Ladder, argumentando que os países ricos são bons para recomendar que quem está chegando faça o que ele dizem, abrindo sua economia, mas não repita o que fizeram. Basicamente, os ricos subiram e quando chegaram lá em cima removeram a escada. Já em 1841, o economista alemão Friedrich List acusou os britânicos de "chutar para o lado a escada que eles tinham escalado quando alcançaram o topo da posição econômica mundial". Na verdade, bem antes. Chang diz que neoliberais têm "amnésia histórica" ou reescreveram esta "história secreta do capitalismo". O livre comércio vale para os ricos depois que o protecionismo assegurou vantagens no jogo. No século 15, o rei Henrique VII já adotou uma "política industrial dirigista" para impulsionar o setor têxtil na sua infância. O mesmo dirigismo que a Coréia do Sul adotou mais recentemente para sua decolagem econômica. Para fazer o que Chang define de transição de "Suazilândia para Suíça", a Coréia do Sul nutriu algumas novas indústrias, selecionadas pelo governo em consultoria com o setor privado, através de proteção tarifária, subsídios e outras formas de apoio estatal até que "elas tinham crescido suficientemente" para enfrentar a competição internacional. Chang faz advertências aos países em desenvolvimento em um exercício de futurologia no epílogo do seu livro com o título São Paulo, Outubro de 2037. A indústria Soares, especializada em nanotecnologia, não agüenta o tranco quando o presidente brasileiro Alfredo Kim, descendente de coreanos, rende-se à ortodoxia do livre comércio. Nessa futurologia sobre a armadilha do neoliberalismo, a indústria brasileira, exceto a aeroespacial e o etanol, vai para o brejo. Linhas adiante, Chang escreve que "muitas coisas que eu inventei são deliberadamente exageradas, mas elas têm uma sólida base na realidade". Em uma resenha sobre o livro de Chang publicada no Financial Times, Martin Wolf, aponta os exageros do autor. Wolf ressalta que não faz sentido se remeter aos modelos protecionistas do século 19 (adotados pela Grã-Bretanha e EUA). São outros tempos. É verdade que nem todos os países com grandes êxitos econômicos nas décadas recentes (da China à Finlândia) são entusiastas do livre comércio, mas todos dependeram da economia mundial e, portanto, do comércio, para o seu sucesso. A própria Coréia do Sul, com sua mão-de-obra altamente educada e com capacidade pesada para poupar e investir teria crescido espetacularmente sem a necessidade de protecionismo. E nas diatribes de Chang, duas coisas incomodam. Ele relega corrupção e falta de democracia para um plano secundário como desculpas dos "maus samaritanos" para encobrir o fracasso do neoliberalismo. Ainda bem. * Caio Blinder integra a bancada do programa de TV Manhattan Connection. É autor de Terras Prometidas (Garamond),l ivro de reflexões sobre a condição judaica

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