Botando fogo pelas ventas

Pequim 2008 será uma celebração das virtudes do comunismo chinês. Revogadas todas as indisposições em contrário

PUBLICIDADE

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Hoje a tocha olímpica passa por Seul. O que nos reservam os sul-coreanos? Quase certamente um repeteco do que temos visto desde que a tocha partiu de Pequim: vaias e protestos. A China não montou apenas a mais dispendiosa Olimpíada de todos os tempos (custo: US$ 40 bilhões), mas também a mais contestada e boicotada da era moderna. Sete anos atrás, o vice-presidente do Comitê de Organização dos jogos deste ano, Liu Jingmin, acenou com a promessa de que eles ajudariam a "mudar a face da China". Não mudaram. Tudo continua como na época em que a China, desgastada por seu insistente desrespeito aos direitos humanos, perdeu para Sydney a chance de hospedar a Olimpíada de 2000. Na verdade, piorou, asseguram chineses e estrangeiros que lá vivem ou de fora a monitoram com rigor. O dragão chinês continua botando fogo pelas ventas. Apesar do prometido encontro com o dalai-lama, o contencioso com o Tibete só se agravou. A repressão interna também. A desastrosa diplomacia pró-Mianmar e pró-Sudão (o algoz de Darfur) não sofreu alterações. As cosméticas medidas adotadas pela burocracia ambientalista tiveram uma serventia apenas: manter com a China a medalha de ouro da poluição mundial. Ninguém duvida que o ar em Pequim estará, daqui a três meses, mais irrespirável que o de Los Angeles nos Jogos Olímpicos de 1984. Nada disso, porém, comoveu os habituais patrocinadores olímpicos. Atraídos pela economia que mais cresce no mundo, investiram em Pequim 50% a mais do que aplicaram nos Jogos de Atenas, em 2004. As multinacionais, como as nações, não têm amigos nem certos escrúpulos, mas interesses. E em nome deles realejam o que nos querem impingir como evidente e indiscutível. Ou seja, que os Jogos Olímpicos promovem, unicamente, a excelência atlética e a confraternização universal. Às vésperas da Olimpíada de 1976, em Montreal, com o massacre de Munique ainda latejando na memória, o Canadá proibiu Taiwan de comparecer aos jogos com o nome de República da China. Talvez não tivesse tomado essa atitude de livre e espontânea vontade. Mas a realpolitik, prevalente até nas Olimpíadas, impôs sua "razão superior". Para o Canadá, que então negociava 1 milhão de sacas de grãos com a República Popular da China, mais importante do que competir era negociar cereais com Deng Xiaoping. "Olimpíada não é lugar de protesto", trovejou um manda-chuva da Samsung após as manifestações antichinesas em Atenas. "A Olimpíada é uma força do bem", ponderou um representante da Coca-Cola, outro assíduo patrocinador dos jogos. "Boicotes nada resolvem", alegou Jacques Rogge, presidente do Comitê Olímpico Internacional. Estavam no seu papel, zelando por seus investimentos e, no caso de Rogge, dos "ideais olímpicos". Mas isso não nos obriga a engolir a cantilena. Qualquer lugar bem visível e assediado pela mídia é um convite à manifestação pública. Nenhum evento esportivo, nem sequer, creio, a Copa do Mundo de futebol, é acompanhado tão intensamente pela imprensa mundial quanto a Olimpíada, cuja pureza de propósitos ("Olimpíada é festa e confraternização entre os povos") foi pras cucuias antes mesmo de seu idealizador, o positivista barão Pierre de Coubertin, baixar sepultura. Os Panteras Negras aproveitaram-se dos Jogos no México em 1968. Dissidentes sul-coreanos azucrinaram a Olimpíada de Seul em 1988. Graças aos Jogos de Sydney o mundo inteiro tomou conhecimento da secular segregação sob a qual vivem os aborígines australianos. Força do bem? Ô-ou! Não eram exatamente do bem os paredros do COI envolvidos, anos atrás, em escândalos de suborno. Não compraria um carro usado do catalão franquista Juan Antonio Samaranch, que entre 1980 e 2001 dirigiu o COI, nem muito menos de Avery Brundage, presidente do Comitê Olímpico dos EUA quando dos Jogos de Berlim, em 1936, admirador confesso de Hitler e diretor de um clube de Chicago cuja porta ostentava uma placa proibindo a entrada de negros e judeus. A história do COI não é das mais edificantes. Foi um antro de espiões da CIA, segundo uma reportagem da revista Saturday Evening Post (maio de 1967) . Quanto à utilidade dos boicotes, o infligido aos Jogos de Moscou, em 1980, ajudou a minar a propaganda soviética em defesa da invasão do Afeganistão, assim como o troco na Olimpíada de Los Angeles, quatro anos depois, fortaleceu setores da elite soviética contrários a uma aproximação com o governo de Ronald Reagan. Li não sei mais onde que a arma mais efetiva no combate ao apartheid não foram as sanções comerciais impostas à África do Sul pela comunidade internacional, mas o veto à participação daquele país em competições esportivas. O boicote ao críquete falou mais alto. Desde os tempos em que Aquiles media forças perto das muralhas de Tróia que as Olimpíadas têm servido aos interesses da política e do comércio. Nos idos de Píndaro e Platão, uma bulhenta horda de camelôs e marqueteiros de atletas apinhava o sopé do Monte Olimpo. Os patrocinadores da época não vendiam espadas, sandálias, saiotes ou clâmides, mas azeite. Seus comerciantes disputavam a tapa a preferência dos melhores participantes, pois era com óleo de oliva que os atletas da Grécia antiga lubrificavam seus corpos. Mulheres no estádio olímpico, só as sacerdotisas do templo de Deméter. Por quê, não sei, mas é provável que tenha algo a ver com o fato de Deméter ser mãe de Pluto, deus da riqueza. Um dos primeiros a refutar a falsa pureza das Olimpíadas foi o sociólogo e historiador americano Lewis Mumford. No ensaio Tecnologia e Civilização, publicado dois anos antes dos Jogos de Berlim, Mumford enquadrou o "esporte dos deuses dos estádios" como um fator de estabilização do status quo e domesticação das massas. Vários antropólogos consideram essa visão por demais rígida e restritiva, mas a história está cheia de tiranos (vide Hitler) que se serviram do circo esportivo para aliviar as tensões e frustrações da patuléia e anestesiá-la com infladas exortações nacionalistas. Os Jogos de Pequim prometem dar razão a Mumford. Recente reportagem do Financial Times revelou que o chefe do Comitê Olímpico da China, Liu Qi, tem feito de tudo para transformar Pequim 2008 numa grande festa nacionalista, numa celebração das virtudes e conquistas do comunismo chinês. Revogadas todas as indisposições em contrário. SEXTA, 25 DE ABRIL Um aceno aos tibetanos A China anuncia que se reunirá com representantes do dalai-lama, líder espiritual do Tibete, ocupado pelos chineses desde 1950. A decisão acontece depois de forte pressão internacional, que já ameaçava o sucesso dos Jogos Olímpicos de Pequim 2008.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.