Brasil, junção de três rios

Metáfora sobre a mestiçagem inspira antropóloga a dizer que cotas raciais são uma enganação perigosa

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Por Laura Greenalgh
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Em 13 de maio de 1888, Isabel assinou uma lei cujo texto não tinha mais do que três linhas. E formalmente enterrou a escravidão. Mas a Lei Áurea foi sovina nos dividendos políticos: a princesa conquistou a simpatia do povo e o apelido de "Redentora", porém acabaria perdendo o trono, conforme previsão agourenta do barão de Cotegipe. Cento e vinte anos depois, a data é celebrada no meio de um quiproquó sobre cotas raciais. Há pouco mais de duas semanas, um grupo de empresários, profissionais liberais, sindicalistas e um elenco estelar de intelectuais - o compositor Caetano Veloso, o economista Eduardo Giannetti e a antropóloga Ruth Cardoso, entre eles - fez chegar ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, um manifesto intitulado "113 Cidadãos Anti-Racistas Contra as Leis Raciais". Essa cruzada tem como líder Yvonne Maggie, antropóloga que há anos critica as políticas sociais baseadas no conceito de discriminação positiva, "o que já é uma contradição em si. Onde é que já se viu discriminar positivamente?" Veja também: As arestas da (des)igualdade Uma data para ser celebrada? O movimento tem lhe valido apoios, muitos, e xingamentos, idem. "No fundo, o que está em jogo são dois projetos de Brasil. Um pragmático, que passa por cima de princípios ao propor divisões raciais da sociedade, e outro universalista, que aposta na igualdade de todos perante a lei e a Justiça", explica Yvonne. A carta ao Supremo gerou pronta reação: na semana que passou, outro grupo de notáveis, entre eles o veterano ativista Abdias Nascimento, o ator Lázaro Ramos e o arquiteto Oscar Niemeyer, entregou ao STF documento com uma contundente defesa das cotas. Nesse bateu-levou é que a Câmara dos Deputados poderá votar o PL 73/99 e o Supremo deverá se manifestar sobre uma ação de inconstitucionalidade. Ambos, projeto de lei e ação, tratam das cotas raciais em universidades brasileiras. Para Yvonne, melhor não votar nada enquanto o clima for de racha e confronto. "Deveríamos fazer um debate sério sobre que projeto de Nação queremos. Sem ataques, afinal, não estamos aqui debatendo emoções." Ironicamente, festejamos o aniversário da Lei Áurea em meio ao debate sobre cotas raciais. Sinal de que a situação da população negra mudou no Brasil ou tensões do passado voltam à tona? Eu poderia começar dizendo que existem duas versões para o fim da escravatura no Brasil. Uma diz que a abolição não aconteceu. Desde 1988, quando se comemorou o centenário da Lei Áurea, essa versão se faz presente: "No Brasil ainda se escraviza um grupo". Outra versão entende ter havido uma mudança radical no estatuto jurídico da Nação, rumo a uma legislação "a-racial". Depois da abolição, vieram a proclamação da República e logo a primeira Constituição, considerando todos os cidadãos iguais em direitos. Então, entendo que o racismo não é efeito da escravidão, mas algo produzido depois. A senhora afirma que não havia racismo no regime escravocrata? O que havia era um sistema jurídico estabelecendo que uns eram senhores e outros, escravos. Mas o sistema não era baseado na idéia de raça. Estudos comprovam que o "negro", como categoria social, surgiu depois da abolição. O Brasil foi um dos últimos países a libertar escravos. Isso não explica muitos dos problemas atuais? O Brasil foi um dos últimos, porém, quando veio a abolição, o País tinha poucos escravos. Nossa luta abolicionista não foi uma guerra, mas uma luta de grupos, um embate de interesses muito forte, em que vários perderam a vida. Mas não houve algo nem remotamente parecido com a Guerra de Secessão nos Estados Unidos. Afinal, quando é que começa o racismo no Brasil? Desde a Constituição de 1890, o País adota o princípio de igualdade. Não significa que no dia-a-dia da vida brasileira não encontremos pessoas racistas, que devem ser combatidas. E não só elas. A própria idéia de raça deve ser combatida. Porque o racismo se manifesta quando dividimos os seres humanos em raças. Foi o que aprendemos com o Holocausto judeu no século 20, embora teorias divisionistas já estivessem circulando desde o século anterior, com a pretensão de explicar a evolução do mundo. Depois da 2ª Guerra houve uma convergência mundial em torno da idéia de que só existe uma raça - a humana. E a própria ONU corroborou essa visão. Que explicação a antropologia dá para o preconceito? Preconceito, como o racismo, é um mal que assola a humanidade. O fato de sermos humanos produz aquilo que a antropologia chama de etnocentrismo, porque tendemos a nos voltar para nossos próprios valores. O preconceito existe, deve ser reprimido e a sociedade brasileira tem mecanismos para fazer isso, tanto que ninguém se declara racista. Porque racista é sempre o ''outro''. Jamais nos assumimos como tal. E o que significa isso? Uma forte repressão em torno do tema. No Brasil discriminação racial é crime inafiançável. Por que, apesar da severidade das leis, há tanto racismo na praça? O importante é criminalizar para mostrar que raça não pode ser critério de nada. Como já disse, esse princípio vem lá da Constituição de 1890. A rigor não precisaríamos nem da Lei Afonso Arinos. O que a senhora acha do Estatuto da Igualdade Racial, mais recente? É o ponto culminante das políticas racializantes no Brasil. Seus autores parecem se esquecer de algo chamado "classe social". Tudo, para eles, vem da raça. Então, vejamos: quanto ganha um procurador da República e quanto ganha um funcionário raso da Justiça? Quanto ganha a sua empregada e quanto você ganha? Nossa herança escravocrata tem muito mais a ver com um sistema econômico que produz desigualdades o tempo todo. Então, em que patamar fica a chamada democracia racial brasileira? Essa expressão foi utilizada por aqui nos anos 40, quando o mundo lutava contra o racismo. Ela é um mito? Sim, é mito, utopia. Tem a ver com a idéia de que todos podemos viver numa situação de equilíbrio, como dizia Gilberto Freyre. Só que hoje a expressão nada tem a ver com o que está acontecendo no Brasil. Por quê? Por que estamos diante de dois projetos de Nação, sendo um deles completamente pragmático: "O Brasil é desigual, os negros se sentem discriminados, façamos políticas para consertar isso". O outro projeto quer unir todos em torno de uma mesma idéia de Nação. É a visão do Gilberto Freyre, mas é também a visão de um naturalista alemão do século 19, Von Martius, que via o Brasil como a junção metafórica de três rios - a cultura indígena, a cultura européia, a cultura africana. Há no primeiro projeto o que eu chamo de "princípio de realidade pragmática". Mas esse princípio de realidade pode anular a realidade dos princípios? Se fizermos isso, a vida democrática fica impossível. Atropelamos os princípios? Sim. Quem vive a pobreza e a exclusão tem urgência. Mas não podemos correr o risco de fazer das políticas de cotas um bumerangue contra esses mesmos cidadãos que hoje queremos proteger. Hipocrisias à parte, a grande discussão que o Brasil trava hoje é o projeto de Nação que queremos. Para mim, há uma disputa muito clara entre aqueles que pretendem uma sociedade multirracial, separada, dividida, segregada, e aqueles que lutam por princípios universais, que beneficiem todos. Essa é também uma discussão internacional. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte está debruçada sobre a seguinte pergunta: que democracia os americanos querem? Porque existe uma reação à democracia que se baseia em ações afirmativas que só dividem. Os americanos voltam a falar em direitos iguais, para todos. Em países da Europa também se tem dado ênfase a discursos universalistas, como forma de conter o racismo, a xenofobia. Os EUA vivem o day after das políticas afirmativas. E nós? Quando os americanos descobrem que essas políticas fazem mal, resolvemos imitá-los. E por pressões de fora! A visão de tratar desigualmente os desiguais é uma fórmula do Banco Mundial, do Bird, da Fundação Ford, enfim, de organismos hoje questionados dentro dos EUA, mas que exportam uma receita imperialista. Quando o Brasil teria importado a receita? Até a Constituição de 1988, não se colocava a idéia de raça e não se distribuíam direitos de acordo com isso. Era proibido por lei. Mas as coisas foram mudando. Em 2001, há um marco importante: a Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban, na África do Sul, promovida pela ONU. Ali o Brasil modificou radicalmente sua postura frente ao ordenamento jurídico do País. E começou a implementar ações afirmativas. Digamos que o Brasil vinha acumulando forças nas cúpulas sociais da ONU, nos anos 90 - no Rio, em conferência sobre meio ambiente, em Viena, na conferência sobre direitos humanos, no Cairo, em conferência sobre população, em Pequim, na conferência sobre mulheres. Ou seja, seria natural que o Brasil desse um passo à frente na conferência sobre racismo. É verdade. Mas, no caso de Durban, a conferência fracassou. Porque ela foi montada para discutir a situação do Oriente Médio, só que israelenses, palestinos e americanos abandonaram a reunião. Já para os brasileiros, o encontro foi incrível. Houve uma confluência de movimentos e líderes negros do Brasil. E houve aceitação, por parte do nosso governo, das propostas da delegação brasileira. Se existem dois projetos de Brasil, que País os jovens percebem? Brasileiros com mais de 15 anos aprenderam nos livros de História que somos produtos de uma grande mistura. Mas quem tem menos de 15 anos aprende que é preciso ter orgulho étnico. Porém, nós, os acima de 15, sabemos bem quem propôs essa idéia no passado, não é? Foi o orgulho étnico que produziu a eugenia, o nazismo, o Holocausto. Já vimos esse filme em outros lugares, sabemos o que produz o ódio racial. O IBGE mostra que hoje mais brasileiros se autodefinem como negros e pardos. A ponto de se falar numa maioria negra nos próximos meses. Isso não desempata o jogo? Temos uma cultura que aproxima os opostos. Qual é o nosso sistema cotidiano de classificação por cor? É o sistema do gradiente. Você não chama ninguém de branco. Diz que é claro. Nem de negro. Diz que é escuro. É assim que as pessoas fazem no dia-a-dia, movidas por uma vontade de aproximar, e não de categorizar, muito menos segregar. Além disso, recenseamento não define identidade, tanto que há movimentos de mestiços na Amazônia, pessoas que não se identificam como negros e reagem. É esse tipo de tensão que queremos para o Brasil? Não aprendemos nada com Ruanda ou Kosovo? O Brasil não é assim. Temos cores, temos credos, temos o candomblé fazendo conviver o catolicismo e o protestantismo, enfim, temos uma identidade flexível e uma cultura plástica. Vamos jogar tudo isso no lixo? O que vamos fazer com Tom Jobim ou Caetano Veloso? O que vamos fazer com todos os livros que lemos sobre nosso País? A senhora prevê conflitos raciais explosivos no Brasil? Não estou dizendo que amanhã haverá conflitos de rua, até porque não tenho bola de cristal. Apenas tento refletir sobre o passado: toda vez que o Estado se meteu na identidade étnica do cidadão, o resultado foi tragédia, violência, mutilação, dor. Falamos em democracia racial e não nos misturamos socialmente Por quê? Que fique bem claro: o Brasil não é uma democracia racial. O Brasil é uma democracia, ponto. Democracia que vem se fortalecendo, fruto da luta de todos nós. Agora, a divisão social vem da concentração de renda. Existe elitismo, como existe preconceito contra negros, índios, "paraíbas"... Nossa desigualdade começa no acesso aos bens e serviços. Quantos brasileiros estão aptos a enfrentar um vestibular com o ensino médio que recebem? O problema está aí e teria de ser atacado de frente. O povo precisa parar de ser enganado: política de cotas é custo zero. Em compensação, gasta-se muito para melhorar a educação. Gasta-se com bibliotecas, com laboratórios, com capacitação desses professores que se vêem sozinhos diante de uma realidade cada vez mais hostil. Os defensores das cotas dizem que o Brasil sempre lidou com a igualdade em termos formais. E só agora começa a traduzi-la em políticas compensatórias. Isso é de um pragmatismo assustador. Eles dizem que estão lutando pela inclusão dos excluídos. Que excluídos? Todo o povo brasileiro? Se assim fosse, estariam lutando pela inclusão no ensino fundamental e médio, não no ensino superior. Façamos um debate sério, essencial, ainda que mexendo em feridas. Não se trata de discutir a universidade brasileira, como eles querem, mas a Nação brasileira, como temos defendido. A introdução do quesito cor no Censo permitiu comparações estatísticas que comprovam o chamado ''fosso entre negros e brancos''. Tenho receio disso, porque os números dançam, basta você mudar a metodologia. Estatísticas são construídas a partir de perguntas. E a pergunta que me parece pertinente é: o que produz o fosso? Eles estão dizendo que é o racismo. Não há provas. Bater nesta tecla significa cometer um erro metodológico crasso, do tipo "adoçante engorda, porque todo mundo que faz uso dele é gordo". No Brasil 35% de brancos se definem como muito pobres. O que vamos fazer? Criar uma política afirmativa para eles? Como aceitar que uma política beneficie uma pequena parcela de negros de classe média, quando a imensa maioria dos brasileiros luta por migalhas? Como pegar uma régua e traçar linhas divisórias numa classe com crianças de todas as cores, que se pensam integrantes de uma só nação? Quem tem o direito de dividi-las? Quem se responsabilizará pelas conseqüências dessa cisão no futuro? Nossas crianças... Espere, me deixe fazer outro raciocínio. Em 2009, comemoraremos os 60 anos do livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Você dirá: o que isso tem a ver com o tema? E eu responderei: tudo. Essa obra transformou radicalmente o século 20. Simone disse: não nascemos mulheres, nos tornamos mulheres. Porque as regras sociais fazem a diferença, muito mais que o sexo, a biologia. A dominação não está inscrita no corpo, mas ao categorizar indivíduos como seres inferiores. Caímos nessa armadilha ao inventar no Brasil um grupo que se tornará "negro" por discriminação. Mulheres também são alvo das cotas. Mas assim como há instituições de ensino superior com dificuldades para preencher vagas destinadas a alunos negros, partidos enfrentam dificuldades para preencher a cota de candidatas. É uma deficiência ou uma contingência natural dessas políticas? Cotas são como uma profecia que se consuma. Porque as pessoas, mulheres ou negros, são obrigadas a se posicionar do ponto de vista da inferioridade. E concordo que só a universalidade é emancipatória.

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