Brios e vacilos nas fileiras

Exoneração de general contrário ao PNDH-3 levanta questões sobre a integração dos militares ao País

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Por Laura Greenalgh e Ivan Marsiglia
Atualização:

Demita-se o general. A ordem foi executada na semana passada, em poucos lances: divulgada pela imprensa a carta em que o general Maynard Marques de Santa Rosa chama de "comissão da calúnia" a Comissão da Verdade proposta no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), o ministro da Defesa, Nelson Jobim, determinou rápida averiguação dos fatos ao comandante do Exército general, Enzo Peri. Este, por sua vez, cumpriu o pedido e já seria o signatário da carta de exoneração de Santa Rosa de um alto posto na corporação - a chefia do Departamento de Pessoal. O documento foi apresentado ao presidente Lula, comandante em chefe das Forças Armadas, e prontamente endossado.Para quem tem cabelos grisalhos e ao menos se lembra daquela insuportável marchinha Eu te Amo, meu Brasil, o episódio é prova de que o País mudou. Hoje um ministro civil pode enquadrar um general rebelado. Na carta libelo, que primeiro circulou pela internet, Santa Rosa entrincheirou-se em citações célebres ao atacar a comissão. Fez uso do Discurso sobre o Método, de Descartes, denunciando os "inimigos da verdade". Consultou Nietzsche ao diagnosticar que "mentes ideológicas tendem ao fanatismo". E bradou contra sanhas persecutórias, relembrando os "sicários de Torquemada", na Espanha inquisitorial. Foi longe.Mas será que Santa Rosa fala por si? Vocaliza a insatisfação de um setor do Exército? Há inquietação em quartéis? Menos, menos, menos. A entrevista que se segue acalma estoicos e paranoicos ao iluminar um setor ainda pouco estudado no Brasil - o mundo militar. Nisso o antropólogo Celso Castro é especialista. Professor do Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), coordenou ao lado da cientista política Maria Celina D"Araujo um valiosíssimo trabalho de preservação da memória militar pós-64. São horas e horas de testemunhos gravados com os artífices da ditadura brasileira, material depois editado em livro, numa trilogia - Visões do Golpe, Os Anos de Chumbo e A Abertura. Castro também é autor de A Invenção do Exército Brasileiro e Antropologia dos Militares (este lançado em 2009, pela Ed. FGV). Duas décadas de pesquisas no mesmo campo dão-lhe segurança para afirmar que pensamento "linha-dura" não tem mais espaço nas três armas; que os comandantes de hoje terão de aceitar que a memória do passado vai virar história (e deveriam colaborar para isso); e que tanto o governo quanto a sociedade precisam construir uma nova integração dos militares à vida do País, "passando por reconhecer seu papel estratégico na Amazônia, do qual não desejam abrir mão". A exoneração do general Santa Rosa sinaliza tensão entre militares e civis no governo?Creio que não. Parece tratar-se do caso isolado de um general que está, aliás, prestes a passar compulsoriamente para a reserva. Para se falar em tensão entre civis e militares seria preciso ter uma conjuntura política em que os princípios da autoridade e da disciplina estivessem em risco, devido a atos coletivos de protesto militar. Ao contrário, a resolução do episódio reforçou a autoridade do comandante do Exército, do ministro da Defesa e do presidente da República.Ainda existe nas Forças Armadas a chamada "linha-dura"?Não se tomarmos por "linha-dura" algo similar à ação do grupo dos que queriam, no início do regime militar, "mais revolução", ou que, mais tarde, tentaram se colocar contra o projeto de abertura. Nas duas últimas décadas, salvo manifestações individuais sem maiores consequências, nada disso aconteceu. Ocorrem, é verdade, manifestações de militares da reserva, mas dificilmente podem ser tomadas como representativas do que pensa a maioria dos oficiais da ativa. E há uma diferença geracional crescente.Setores do Exército tiveram posição bem crítica no debate sobre a demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, decidida depois pelo Supremo. A Amazônia ainda é, como no passado, um tema estratégico para os militares?Ao longo das três últimas décadas, a Amazônia tem sido cada vez mais importante para os militares, especialmente para o Exército. Isso se manifesta de diferentes maneiras: na transferência de unidades para a região, no desenvolvimento de estratégias e táticas militares e no investimento simbólico sobre a missão de defender a Amazônia. Meu padrinho, marechal Augusto Maggessi, comandou a Amazônia em 1960, quando a sede da então região militar ainda era em Belém. Ele dizia que foi para lá "desterrado", devido a divergências com o ministro da Guerra. Há 50 anos, essa era a visão predominante do que significava ser transferido para a Amazônia. Hoje, a maioria dos oficiais formados pela Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) não só deseja servir lá, como vê nisso algo importante, ou indispensável, para a carreira. A defesa da região passou a ser mobilizadora não só para os militares, mas para amplos setores civis. O apelo é tanto que, quando a Marinha quis chamar atenção para as águas territoriais, batizou a região de "Amazônia Azul".Como o senhor vê as relações entre o Executivo e as Forças Armadas nos governos da pós-redemocratização (1985 em diante)?Se, em 1985, no limiar da transição do regime militar para a Nova República, reuníssemos todos os analistas políticos e alguém com uma bola de cristal previsse que, no futuro, teríamos hiperinflação, o impeachment de um presidente, a chegada ao Planalto de um líder de esquerda e que Carlos Lamarca receberia post mortem a patente de coronel, aposto que iríamos prever tentativas de golpe, ou pelo menos manifestos coletivos e prontidões nos quartéis. Tais manifestações, tão comuns ao longo de nossa história republicana - vale lembrar que a República foi instaurada por um golpe de Estado protagonizado por um grupo de militares - simplesmente não aconteceram na Nova República. Trata-se de um recorde em nossa história republicana. O Ministério da Defesa, criado pelo presidente Fernando Henrique, está consolidado?Nesses dez anos de existência do Ministério da Defesa talvez tenha havido menos resistência militar à subordinação política do que falta de "direção política" sobre as Forças Armadas, como dizia o professor Eliézer Rizzo de Oliveira. A atuação do ministro Jobim tem sido, sob este aspecto, mais efetiva do que a de seus predecessores. O Ministério da Defesa está se consolidando como locus dessa direção política. E o episódio da exoneração do general pode ser um marco desse processo. Por quê?Para se controlar uma instituição baseada na hierarquia e na disciplina é preciso saber exercer o comando e manter a liderança. Ainda há muito a se fazer em termos de maior integração estratégica e modernização das Forças Armadas. Chefes militares, hoje, dizem que os arquivos da época da ditadura foram incinerados, sem dar provas da destruição. Por que temem abrir informações? Perguntamos pois: no CPDOC, os senhores tiveram oportunidade de ouvir destacados comandantes militares.O conjunto de entrevistas que fizemos no CPDOC, no início dos anos 90, com importantes chefes do regime militar foi um marco, pois havia pouquíssimas fontes disponíveis a respeito do pensamento desses personagens. O material foi publicado (grande parte está disponível no site www.fgv.br/cpdoc), estimulou pesquisas e o surgimento de novas fontes documentais. Quanto aos arquivos, não sei se foram destruídos ou preservados. É difícil se ter certeza. Mas, se existirem, devem ser tratados como fonte histórica de interesse público: como patrimônio nacional, e não como assunto corporativo.Em 1964, militares repetiam que era preciso evitar, a qualquer custo, a ''volta ao passado'', a ameaça comunista. Hoje usam o mesmo argumento de não olhar para trás, noutro contexto. Faz sentido?A retórica de "não se olhar para trás" tem sido acionada por muitos militares desde aqueles tempos. O general Leônidas Pires Gonçalves, por exemplo, em entrevista ao CPDOC, disse que não se devia ficar olhando para o espelho retrovisor e lembrou a passagem bíblica referente à mulher de Lot, que olhou para trás e virou estátua de sal. Mas "olhar pelo retrovisor" é algo fundamental para a própria vida social. É impossível evitar que o passado seja estudado, e que o processo de construção de memórias sobre um período histórico, mesmo que divergentes, seja detido. Cada vez mais fontes surgirão sobre o regime militar - diários, entrevistas, documentos oficiais, etc. - e o período continuará a ser visitado por historiadores, jornalistas, cineastas, ativistas.O senhor afirmou certa vez que o Exército brasileiro era uma instituição em crise de identidade.Escrevi isso há 15 anos. O peso da herança negativa que o regime militar deixou para a imagem da instituição era, então, mais presente. Os militares se ressentiam demais dos civis. Lembravam que em 1964 não estavam sozinhos, pois o golpe fora defendido e apoiado por vários setores da sociedade. Se isso é verdade, é preciso, no entanto, chamar atenção para o fato de que, em 1964, nem mesmo os militares mais "revolucionários" imaginavam que a instituição permaneceria no centro do poder político por 21 anos. Ou seja, muito do que havia de apoio - e não se pode negar que houve - foi sendo perdido com o exercício autoritário do poder. Os militares que entrevistamos para o centro geralmente acusavam a mídia de ser "revanchista", o que é simplificador demais. Porém, o mais incômodo para eles era lidar com a perda de legitimidade social. As Forças Armadas continuavam a ser bem avaliadas em pesquisas de opinião como instituições confiáveis, porém traziam uma marca negativa daqueles anos duros. Os militares costumavam dizer que haviam perdido a "batalha pela memória", mas não adiantava culpar a mídia: o próprio regime militar é que fez mal à instituição.Como o incômodo se fazia notar?Quando fiz pesquisa de campo na Aman, em 1987 e 1988, que resultou em minha dissertação de mestrado O Espírito Militar, era comum os cadetes se queixarem da imagem negativa que enfrentavam no "meio civil". Contavam-me histórias sobre serem acusados de pertencer a uma instituição que torturara, que havia sido autoritária, agido contra o povo. Isso contrastava com a imagem de distinção e prestígio social que seus comandantes traziam como experiência de vida. Entre uma geração e outra, a imagem do militar havia se modificado. Aí estava a crise de identidade. De lá para cá, houve uma renovação geracional, a memória sobre o período transforma-se em história e outros elementos vão reconfigurando a imagem dos militares. Missões de paz, como a do Haiti, são esses elementos positivos?A participação em missões de paz e as ações cívicas de apoio em regiões remotas ou que contam com pequena presença do Estado modificaram a percepção predominante dos civis a respeito daquela que foi, de fato e por muitos anos, a principal missão dos militares brasileiros: combater o inimigo interno, a "subversão", no contexto da Guerra Fria. Pois o fato de os militares terem se mantido dentro da ordem democrática nesses 25 anos tem sido o dado mais relevante.Enquanto a sociedade brasileira debate a união civil entre pessoas do mesmo sexo, um general de quatro estrelas, Raymundo Nonato de Cerqueira Filho, fez declarações consideradas homofóbicas e teve sua indicação a uma vaga no Superior Tribunal Militar adiada. Esse episódio aprofunda essa imagem anacrônica das Forças Armadas?Sim, mas é importante observar que o general procurou moderar suas afirmações, logo em seguida, perante a Comissão de Constituição e Justiça do Senado. Já o almirante Luiz Pinto, também indicado a uma vaga no STM, disse que não via problema no militar ser gay, desde que mantenha sua dignidade. Se é verdade que as Forças Armadas, e isso acontece não só no Brasil, são mais conservadoras do ponto de vista dos costumes, elas sempre acabam tendo que se adaptar aos direitos civis e individuais, respeitando-os, conquistas da ordem democrática e de uma sociedade pluralista. Nas últimas décadas, por exemplo, houve a novidade da crescente participação das mulheres nas Forças Armadas.A formação do militar brasileiro está adequada aos novos tempos?O ensino militar não está subordinado ao sistema civil, embora haja preocupação dos militares em se adequar a procedimentos acadêmicos consagrados. Ainda há muito a avançar. Como todos os educadores, também os militares estão em dúvida a respeito do melhor a fazer num mundo em rápida transformação e com cenários futuros incertos. Continua, por outro lado, a haver um déficit de pesquisas sobre o mundo militar, daí compreender-se pouco o funcionamento dessas instituições. Durante muito tempo, havia grande rejeição do meio acadêmico em se estudar o assunto, como se isso fosse sinônimo de adesão ideológica ou poluição moral. Nada mais equivocado.As Forças estão divididas em relação à Comissão da Verdade, proposta no PNDH-3? E quanto à revisão da Lei da Anistia? A discussão sobre a Lei da Anistia envolve complexidades jurídicas que não tenho condições de avaliar. Sobre o debate político em torno do assunto, o importante é que ele ocorra num contexto democrático como o que vivemos, no qual divergências de opinião e discordâncias políticas são não apenas possíveis, como legítimas. Só que, no caso das Forças Armadas, o único ator político a debater o tema deve ser o ministro da Defesa.Nesse momento países vizinhos investigam e julgam violações aos direitos humanos nas respectivas ditaduras militares. Como isso repercute nas nossas Forças?Sem dúvida há o temor corporativo de que algo similar ao que ocorre na Argentina ou no Chile possa vir a ocorrer também no Brasil, e causar danos de imagem à instituição como um todo. Por outro lado, devemos saber se haverá, aqui, apoio social e político similar ao encontrado nesses países para que esse processo seja levado adiante. Trata-se de questão não resolvida, que deve ser tratada, sempre, no contexto democrático.

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