Cabeças luminosas

Durante quase meio século, o ator italiano Bobò, hoje aos 80 anos, viveu preso num manicômio, porque tem microcefalia. Foi salvo pelo diretor Pippo Delbono, que acreditou no homenzinho que sabia dançar. Na história da dupla de artistas, cenas que o Brasil pode evitar quando crescerem os filhos do zika

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Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:

Cenas de um filme que ainda não vimos por aqui: dois homens montam numa lambreta, um muito alto, outro baixinho. O homem alto (1,93 metro) usa um capacete amarelo, que lhe cabe justo. Na cabeça do baixinho (menos de metro e meio), o capacete cinza sobra e balança. Percorrem uma estrada sinuosa, à noite, até encostar numa cantina. Entram na bodega e observam a placa acima da porta: “Está aberto o manicômio!” Alguém toca um acordeom, enquanto eles comem frente a frente. O mais alto fatia a carne para os dois e limpa com um guardanapo o molho de tomate da boca do baixinho, que não se queixa.

Pippo Delbono, 56 anos, ator italiano e diretor de teatro e cinema, é o grandalhão. O pequenino, também ator, 80 anos e 1,49 metro, é conhecido apenas como Bobò. Tem microcefalia, provavelmente com fundo genético.

  Foto: COMPAGNIA PIPPO DELBONO|DIVULGAÇÃO

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Os dois homens prosseguem na lambreta até um hotel, onde se deitam, numa cama king size. Escolheram a suíte “fundo do mar”, com golfinhos pintados na parede azul. Cada qual está num canto do leito, bem afastados um do outro. Adormecem. O mais alto acorda no meio da noite. O baixinho canta ou reza pra que o outro volte a dormir.

Quem cuida de quem? Quem protege quem? Duas outras cenas, desta vez da vida real, explicam melhor a relação desses dois: num hospital psiquiátrico, o homem pequenino está triste. Vive encerrado ali há quase meio século – entrou aos 14 anos e já tem 60. Abre a boca e grita, grita e grita, mas não sai nenhum som. Perto dali, num tablado de teatro, Pippo Delbono se desespera. Acaba de descobrir que tem aids, num tempo em que não era fácil conseguir remédios. Sente um desamparo grande e passa a viver na rua. Berra alto, mas ninguém o escuta. Nesse momento, qual dos dois tem menos voz?

São homens muito diferentes, e são dois homens iguais. Delbono criou o movimento Teatro da Raiva (“funciona como força criadora, porque dentro da raiva também há amor”), venceu importantes prêmios da dramaturgia europeia e tornou-se pupilo de luminares como Pina Bausch e Iben Nagel Rasmussen. Antes disso, até se consolidar no teatro, viveu maus bocados. Na década de 1990, deprimido por causa da doença incurável, decidiu buscar paz entre semelhantes. “Me chamam de louco, então vou me unir aos que são tachados assim”, dizia o ator, aos que perguntavam por que decidira dar aulas de teatro num manicômio. No hospital psiquiátrico de Aversa, cidade vizinha à sua Napoli, ele conheceu o homem pequenino – surdo, analfabeto, mudo, a quem todos chamavam Bobò. Delbono jamais ouvira falar antes em microcefalia. Quis saber por que o homenzinho (cujo nome, ele viu na ficha, é Vincenzo Cannavacciuolo) tinha aquele apelido. Ele estava lá há tanto tempo que ninguém mais sabia.

Bobò não tinha visitas havia décadas, e quando as recebeu tomou gosto. Durante os meses seguintes, esperou o grandalhão na porta do manicômio todo dia, segurando sempre uma bandeira da Argentina – era fã de Maradona, ídolo do Napoli, e nisso os dois coincidiam. E, eles descobririam, em outras coisas mais. Poucas aulas foram necessárias para Delbono notar a capacidade de empatia do homem mirrado. Tinha o que chamou de uma “ponte de humanidade” – se conectava facilmente a pacientes, enfermeiras, visitantes. E, embora ouvisse só as notas mais baixas, dançava de um jeito hipnotizante, sem errar o ritmo. Minúsculo e gracioso, era difícil tirar os olhos de Bobò. Delbono teve então a louca ideia de tirá-lo de lá, depois de quase meio século de internação. Queria levá-lo do ginásio arruinado do manicômio aos teatros da Europa toda, por que não? Bobò falava com os olhos e com as mãos – lembrava o teatro oriental, que aproxima o ator do bailarino, estilo caro a Delbono.

Na cabeça do diretor, os passos curtos da dança do homenzinho, a presença física forte (dizem que lembra Dustin Hoffman em miniatura) e os ruídos que emite – lamentos suaves, que ficam entre um orar baixinho e o arrulhar de pombos – tornariam Bobò uma presença irresistível nos palcos. “Por causa de sua condição física, quando Bobò faz com que seu corpo exprima um gesto, esse gesto é essencial. É essa força nos movimentos que o faz tão fascinante”, disse Delbono ao Aliás, complementando um pensamento que expõe no filme autobiográfico Grido (2006), cujas cenas abrem este texto.

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Bobò saiu do manicômio em 1996 e passou a viver com o diretor, num apartamento de Napoli. Tornou-se um artista tão conhecido quanto Delbono, principalmente na Itália e França. Participou de todas as peças da companhia desde então (mais de 15, além de cinco filmes) e já esteve em todos os continentes – veio ao Brasil pela última vez em 2010 (deu-se ênfase naquele ano à surdez do ator). De Pina Bausch, arrancou elogios (“adoro o Bobò porque ele nem me dá bola”), e provocou na primeira bailarina da Opera de Paris, uma inusitada reclamação: “Quando danço com o Bobò, o público só olha pra ele, nem me nota”. Se consegue nublar um dos cargos mais cobiçados do mundo da dança, é porque realmente há magnetismo nos passos miúdos do homenzinho. No fim das contas, tornou-se insubstituível à companhia teatral – quando torceu o pé e teve de engessar, não houve como substituir: foram cancelados 10 espetáculos na França.

Ao descrever o parceiro, Delbono reflete sobre o tema principal de sua obra, a igualdade: “Bobò é um grande ator porque é puro. Não tenta imitar ninguém e por isso também se torna inimitável. Ele consegue se transformar no traje que veste. Em um espetáculo, põe a roupa de rainha Elizabeth e parece a rainha, depois coloca a peruca de Mozart e lá está Mozart. E muita gente diz que ele parece o seu avô! A harmonia que há nesse pequenino corpo o transforma num ser reconhecível a todos. Tem a ver com espiritualidade e com a natureza humana. Hoje, pra mim, o que era tido como doença eu vejo como grande capacidade.”

Com Bobò e com Delbono, funciona assim. Mas a microcefalia tem diversas causas (39 síndromes e várias doenças infecciosas, entre elas o zika, podem desencadear a condição), então, antes de apontar semelhanças, melhor frisar as diferenças da condição de Bobò em relação aos bebês brasileiros nascidos após o surto de 2015. Pelas características das complicações no ator italiano (além da surdez, uma deficiência mental moderada), o mais provável é que ele sofra de microcefalia vera – um defeito genético, e não infeccioso, como o zika. “De modo geral, a microcefalia causada por infecções causa complicações mais graves”, diz a neuropediatra pernambucana Vanessa Van Der Linden, uma das primeiras a apontar o surto de microcefalia no Brasil. “Mas as complicações variam muitíssimo, e as crianças afetadas por infecções podem ter quadros leves, e as que têm fundo genético podem também ser graves.”

O ponto em comum entre a microcefalia de Bobò e a dos bebês brasileiros se dá na avaliação do potencial. Nos primeiros meses de um surto como esse – o momento que vivemos hoje –, o importante é fazer a chamada estimulação precoce, as avaliações do desenvolvimento de capacidades (audição, visão, cognitivo e motor) dos bebês, para entender rapidamente a potencialidade. Depois, chegando perto do primeiro ano de vida, as consultas devem ser periódicas com fonoaudiólogo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, gastroenterologista. São os tipos de especialidades necessárias, em muitos casos, ao longo da vida toda, inclusive na idade adulta. A maneira de possibilitar acesso a isso seria por meio da construção de centros de referência multidisciplinar país afora. É um desafio grande, que começa a ser quantificado. Até aqui, 944 casos de microcefalia foram confirmados no Brasil desde o início do surto, em setembro – o Estado com mais casos confirmados é Pernambuco, com 29% do total, ou 272 bebês. Há ainda 4.291 casos sob investigação – a grande maioria (76%, ou 3.276 casos), na região Nordeste. São números altos, para enfrentamento ainda tímido. Desde dezembro, o Ministério da Saúde inaugurou 14 dos chamados centros especializados em reabilitação, onde os especialistas citados podem ser encontrados – ampliação de 10% da rede. É pouco para um problema que aumentou 20 vezes em relação ao que havia antes (cerca de 150 casos por ano). “Quando se trata de deficientes, qualquer dificuldade, de transporte, por exemplo, pode impedir o tratamento e o desenvolvimento de uma pessoa. Por isso a importância de mais centros multidisciplinares”, diz o presidente da Federação Nacional dos Médicos, Otto Baptista. “O problema está caindo na conta dos municípios, que é a ponta mais fraca. Ainda não estamos preparados para enfrentar as consequências do surto.”

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As complicações causadas pela microcefalia também variam muito – de pequenos problemas motores a dificuldades que deixarão a pessoa acamada a vida toda. Não é possível indicar genericamente, portanto, qual a expectativa de vida de alguém com a condição – e nem indicar com precisão, portanto, estimativas de crianças que chegarão à vida adulta, como Bobò. Algumas primeiras pesquisas estão sendo feitas e podem conceder algumas pistas, como o estudo preliminar feito pela equipe de Vanessa Van Der Linden na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD) do Recife. Uma levantamento inicial mostra que 70% das crianças que nasceram com microcefalia no período do surto do zika desenvolveram a forma mais grave da condição. Outros 12% dos casos acabaram descartados para microcefalia e 18% foram identificados com grau leve da condição – os que têm maior probabilidade de atingir a idade adulta. Levando os resultados do estudo preliminar ao universo nacional (o que a equipe de Van Der Linden acredita que pode ocorrer) seriam pelo menos 170 pessoas com maiores chances de chegar à idade adulta.

O que fazer para que atinjam o máximo de seus potenciais? Para a neurologista Laura Guilhoto, coordenadora de Pesquisa APAE em São Paulo, deve-se seguir o mesmo princípio de outras deficiências. “É preciso partir da mesma premissa de sempre, de que toda pessoa tem potencial. Quais barreiras ela poderá transpor, para se tornar mais funcional? É a pergunta a ser respondida”, disse Guilhoto. É preciso atentar, porém, para falsas esperanças, como alerta o neurocirurgião Sérgio Cavalheiro, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A maioria dos casos de microcefalia com fundo infeccioso é muito mais destrutiva do que os casos genéticos, que aparecem em reportagens como exemplos de que tudo é possível por meio da superação. As mães precisam saber que as chances dos filhos que nasceram durante o surto de zika são muito menores. Saberemos disso com mais precisão dentro de um ano a um ano meio.”

No caso de Bobò, o ator está melhor hoje do que há 20 anos, quando deixou o asilo. “Ele parece mais novo hoje. Para mim, é influência da arte depois de sair do manicômio”, disse Delbono. Ou seja, se o homenzinho tivesse tido algum estímulo – situação impensável no interior da Itália dos anos 30 e 40 –, poderia ter melhor desenvolvimento. Fisioterapia melhoraria os movimentos (talvez pudesse jogar futebol, em vez de apenas chutar uma bola) e fonoaudiologia desde cedo poderia transformar seus lamentos efetivamente em voz.

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  Foto: COMPAGNIA PIPPO DELBONO|DIVULGAÇÃO

Como nada disso aconteceu, a forma peculiar de comunicação de Bobò pode ser ouvida (e vista) com mais profundidade no último filme da dupla. Como toda a obra de Delbono, ele reflete sobre o que é e não é “normal”. São cenas que, desta vez, poderemos ver por aqui. Em A Visita (que será apresentado esta semana no festival É Tudo Verdade), o ator microcéfalo tem uma longa discussão (falando com os olhos e as mãos) com o ator francês Michael Lonsdale no Palácio de Versalhes. Lonsdale, ele também, se identifica com Bobò. “Sabe que sou como você? Também tive de viver confinado nos primeiros anos de vida, minha mãe me escondia no porão porque sou filho de um adultério”, confidencia. “E sabe o que penso enquanto caminhamos nestes vastos salões onde os reis viviam sós? Que, no fim, os pequenos têm uma vida muito mais bonita.”

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Bobò solta seu lamento e a gente imagina que ele concorda. Mas é um pensamento que funciona melhor se não forem tiradas, aos pequenos, as condições de beleza na vida. Pouco do passado de Bobò é conhecido. Quase nada além de que foi abandonado pela família aos 14 anos por causa da deficiência e levado ao manicômio. Alguns pontos obscuros revelaram-se pelo convívio. Sabe-se hoje, por exemplo, que ele nunca recebera um presente até a chegada da trupe teatral. “Certa vez, fiquei um mês sem voltar ao manicômio, porque tinha uma viagem. Sabia que Bobò sentiria falta, então deixei um presente com ele”, relembra Delbono. “Voltei um mês depois e o presente de Bobò continuava intacto. Ele levou o pacote para o quarto e não abriu. Estava lá, fechado, do lado do altarzinho que ele montou com imagens de santos. Não sabia o que era um presente, veja você.”

Precisou ficar famoso para se acostumar ao calor das pessoas. Vale também o contrário. A reação do público a Bobò mudou com o passar dos anos. No início, em meados dos anos 90, a companhia de Delbono – que conta com um ator com Down e outro esquizofrênico – recebia críticas por “explorar” a deficiência dos atores. Já não acontece mais. “Hoje são artistas e basta. Bobò é um ator, ninguém mais o trata como incapacitado. Se criticam alguma coisa, é a linguagem teatral que proponho, e não a pessoa”, diz o diretor. É a lógica de que, quanto mais se apresentarem, quanto mais se mostrarem à sociedade, menos preconceito sofrerão. Algo necessário, num País que terá de aprender a conviver com mais cidadãos nessa condição. Eles estão por aí há tempos, na verdade – e há tempos microcéfalos brasileiros adultos já vivem seu quinhão de preconceito. “Já escutei num ônibus aqui no Recife, não adaptado, que a culpa por demorar pra subir era da minha filha, que ela estava atravancando a fila. Me segurei pra não partir pra cima, mas não deixei de dar uma bronca”, comenta o comerciante Nivaldo Barreto, pai de Camila, de 26 anos, que tem microcefalia. “É preciso incluir, meu Deus do céu. A pessoa fica tão mais feliz quando se sente parte de alguma coisa”, complementa Nivaldo. Hora de abrir os olhos para aprendizados que podem vir, por exemplo, da Itália, da relação entre dois homens parecidos, um grandalhão e outro baixinho. Porque a cenas como a que relatou o pai da Camila, por aqui, nós já assistimos demais.

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