Cais da boa esperança

Casa recebe fugitivos de guerra. Muitos nem sequer sabiam que o destino do cargueiro era o Brasil

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Por Monica Manir
Atualização:

5 e 15 da tarde. Era a hora do chá na Somália. É a hora do chá na Somália. Ainda deve ser a hora do chá na Somália. Ali Hass conversa em inglês, língua que domina, mas não sabe no momento como controlar o tempo verbal de seu país. Sabe que tomava chá com leite na Somália. Também tomava muito leite sem chá. Mostra, com as duas mãos no ar, a altura da caneca que emborcava. Big, very big. Pergunto se conhece o africano que acaba de passar do outro lado do pátio. Faz que não com a cabeça. "Do Congo, talvez." Irritado, tira do bolso o celular que comprou na rua. O chip não funciona. Nada funciona. O Brasil ainda não funciona para ele. Há seis meses, quando embarcou clandestinamente em um navio cargueiro, no litoral índico do próprio país, Ali Hass pensava em sobreviver. Vivendo na capital, Mogadiscio, perdera os pais em 2005, além da irmã e do irmão em 2006, todos vítimas dos choques entre grupos de insurgentes e soldados etíopes que ocupam a Somália. Sentia na pele que seria o próximo. Entrou escondido num navio. Descoberto pelos tripulantes, foi trancado num cubículo com colchão. A porta era aberta a cada seis horas para o prato de comida. Só voltou a sorver a luz do sol um mês depois, quando chegou a um porto. "Este lugar é Santos, o país é o Brasil", disse um marinheiro. O africano desmontou. Pretendia um cenário norte-americano, ou então um país que entendesse o que ele dizia e queria da vida. A latitude o traiu. Alguém falou que - ali - Ali Hass não teria emprego. Melhor rumar para acolá, para São Paulo. Ele perguntou para que lado era isso. Então, como um Forrest Gump em marcha reduzida, começou a andar. Se ele não se engana, foram três dias até São Paulo. Na capital, dormiu 20 dias na rua. Alguém, por fim, depois de lhe oferecer pão e café, perguntou de onde vinha. Ali Hass acabou parando na unidade paulistana da Cáritas, entidade da Igreja Católica que, entre outras atividades, orienta estrangeiros em busca de refúgio. Dali passou na Polícia Federal e foi parar na Casa do Migrante, onde acaba de se lembrar da hora do chá. A casa é dirigida por padres escalabrinianos, membros da congregação fundada por d. João Batista Scalabrini, dito pai dos migrantes. Foi construída em 1948 como parte da Missão da Igreja Católica Nossa Senhora da Paz para abrigar os italianos recém-chegados, mas com o tempo caiu no ócio. Voltou à carga nos anos 1970 acolhendo refugiados políticos da América Latina e da Europa sob a proteção de d. Paulo Evaristo Arns. Mais tarde acomodou os migrantes internos que aterravam na metrópole numa parada de ônibus perto da Rua Almirante Maurity, 70, na Baixada do Glicério, seu endereço. Os sul-americanos vieram em seguida e ainda ocupam muitos catres da casa. No último Natal, porém, era maciça a presença de refugiados da África. Padre Lírio Berwanger, um dos responsáveis pela Pastoral do Migrante, aposta em 70% deles na celebração. Virado o ano, representam 45% de uma população de brasileiros e estrangeiros que flutua em torno dos 100. Partem de países em conflito, entre eles Somália, Senegal, Etiópia, Burundi, Guiné, Libéria, Nigéria, Costa do Marfim, Eritréia. Não à toa Ali Hass apostou que o africano do outro lado do pátio era um congolês. Os angolanos representam a maior população de refugiados no Brasil, entre todas as nacionalidades. São cerca de 1.700, vários deles vindos em vôos diretos de Luanda, a capital angolana, para o Rio. A guerra de 26 anos, porém, deu uma trégua e, hoje, os congoleses estão no topo dos que solicitam refúgio no País. Apesar de farta em diamantes e ouro, a população da República Democrática do Congo é maltratada com a combinação de doenças e fome causadas por um conflito que ocorre no leste do país e os obriga a abandonar suas moradias. O moço do outro lado é Dennis John, chegado há um mês. Fala pouco, reza muito. É cristão e só sai da Casa do Migrante para as missas. "Um homem de Deus", classifica um boliviano que por ali passa em direção ao bagageiro. Dennis John pelo menos sabia que embarcava para o sul da América. Tomou o navio na África do Sul e foram 21 dias estáticos, à revelia da maré. Disseram "stay here". Ele ficou. Conta que seus documentos se perderam no vento. Tem 28 anos e deixou na cidade de Lubumbashi a mulher, de 18 anos, e a filha, de 1. A menina tem o nome da mãe de Dennis John, Kamba, que significa "sinal de glória". Trouxe poucas roupas, quase apenas as do corpo. Ganhou outras da casa, que fornece vestimenta recebida de doações. Enquanto aguarda as aulas da língua local, Dennis John consome convulsivamente o dicionário inglês-português, no que tem companhia: dicionário é o item da biblioteca mais consultado (e surrupiado, mas depois devolvido). Sabe que não pode sobreviver no País nem retomar os estudos só com o inglês e o suaíli. "Preciso começar do zero, mas pelo menos estou livre." O grau médio de instrução dos africanos que freqüentam a casa é o 2º incompleto. Há quem traga na bagagem apenas o dialeto local. Esse precisa da ajuda de um "irmão" para entender as regras da casa. Expostas em folhetos escritos em português, inglês, francês e espanhol, elas ditam que os pertences devem ser trancados no bagageiro, cuja chave será deixada com o agente educacional na saída. Álcool e entorpecentes estão proibidos. Cigarro, só na área externa. Celulares não sobem para os quartos. O horário-limite para entrar na casa é 22 horas. Os migrantes devem ainda deixar a cama bem arrumada pela manhã, manter silêncio e não acender as luzes nos dormitórios. Dia desses quiseram fazer um motim contra um roncador. Três, de um quarto com sete, pediram a transferência do rapaz. Carla Aparecida da Silva, coordenadora da casa, contra-argumentou: é necessária compreensão com o problema, um distúrbio universal. Aquietaram-se. Carla, que muitos chamam de mama ou mamá, diz que, mesmo esbarrando em inimigos tradicionais de fé ou de política, os africanos não criam guerras civis na casa. São cordiais, mas se vê que, na hora das refeições, aproximam-se dos seus. As refeições, aliás, têm horário fixo e praticamente determinam a rotina do local. Todos acordam às 6h30 para o café da manhã, que vai até as 7h30. O almoço é oferecido do meio-dia às 13h. O jantar, das 19h às 20h. Os dormitórios são reabertos a partir das 16h30, o que significa que, antes disso, os migrantes devem obrigatoriamente sair à procura de trabalho ou do que a cidade pode oferecer como lazer. O congolês Mbouto Nashala fez musculação de graça por 8 minutos numa academia da região. É outro africano que chegou escondido num cargueiro. Mais de sua odisséia não se sabe. Em bom português, disse que durante a refeição não se fala de boca cheia porque é falta de educação, concorda? Depois precisava urinar. Depois o pé doía. Depois, e afinal de contas, sua vida não tinha nada de muito interessante. Após alguns meses de estada no Brasil, muitos africanos contam com carteira de trabalho provisória fornecida pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), que só legaliza o solicitante uma vez confirmada sua real necessidade de refúgio devido a "fundados temores de perseguição em seu país por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas". Cerca da metade dos pedidos são negados. Os que têm o documento provisório podem, por exemplo, trabalhar na empresa montadora de palcos que requisitou seus bíceps, ou então naquela que pedia a "sangria", matança de frangos. A zimbabuana Escolástica, apelidada Escola, dá aulas de inglês para brasileiros. Chegou de avião, como as duas congolesas também abrigadas na casa. "Raras são as mulheres que chegam de navio", diz a assistente social. Escolástica é educadíssima, mas também escorregou da entrevista. Barry Boubacar não quis conversar quando chegou, apenas no dia seguinte. Fazia cinco dias que botara os pés no porto de Santos depois de uma viagem também na clausura. Partiu de Guiné e, se não lhe falha a percepção, foram dois meses no mar. Barry Boubacar tem 26 anos e está dentro da faixa-padrão de idade que freqüenta a Casa: entre 18 e 40. Fugiu porque foi perseguido por pertencer à Union des Forces Democratiques de Guinée (UFDG), que faz oposição ao presidente Lansana Conté. Barry Boubacar sabia que seu destino era o Brasil, do qual tem as referências clássicas: Pelé, Rivaldo, Ronaldo, Ronaldinho. Não joga futebol, "um esporte de rico no meu país". Tem saudade da mama, a verdadeira. No meio do pátio pipoca uma bola de basquete. São os senegaleses Mobou Saliou e Sabidou Fall, ambos muito acima da linha do horizonte (têm mais de 2 metros) e muito atrás da chance de mostrar seus dotes esportivos. Mobou Saliou chegou de avião a Fortaleza há dois meses. Reclama um pouco das regras da casa, preferia um esquema mais flexível, sem tantos horários fixos. Não fugiu da guerra, fugiu da fome. Já Sabidou Fall faz questão de reforçar que é egresso de uma família com boas condições financeiras. O pai trabalha numa empresa de telefonia. Sabidou Fall é pintor de parede e foi jogador de basquete no seu país. Veio de navio, mas pôde pagar por melhores condições a bordo. Ainda assim, perambulou dois dias pelas ruas de Santos e mais dois pelas de São Paulo. Quando saiu, deixou um bebê de 8 meses, mas não pretende voltar: "Brasil é calmo, mulher é bonita".

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