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Caiu na rede é público

Internet não respeita autoridade. É péssimo para a privacidade devassada e ótimo para a democracia

Por Túlio Vianna
Atualização:

O recente episódio da publicação não autorizada de fotos íntimas da atriz Carolina Dieckmann reafirma quanto a internet é indominável pelas normas jurídicas. Não adianta chorar pelo leite derramado, ensina a sabedoria popular. E os esforços do advogado de Carolina para retirar as fotos da rede não são mais do que uma tentativa de recompor os cacos da xícara, sugar o leite do chão e servi-lo como se nada houvesse ocorrido.É até possível que, com algumas ordens judiciais, as fotos sejam retiradas dos grandes sites e do Google. Os cacos maiores da xícara são facilmente encontrados no chão. A questão são os pequenos fragmentos que se misturam ao leite e estão por toda parte. E as fotos de Carolina encontram-se não só espalhadas em pequenos sites e blogs, mas também nos computadores de inúmeros internautas que as viram e resolveram salvar uma cópia para acessá-las eventualmente no futuro. Em suma: tornaram-se públicas. A internet é uma imensurável memória coletiva não facilmente apagável, pois suas recordações não estão estocadas aqui ou ali, mas estão difusas por milhares de computadores espalhados pelo mundo. Até o advento da internet, as memórias coletivas estavam armazenadas nas bibliotecas, com seus livros, jornais, revistas e, mais recentemente, fitas e discos de áudio e vídeo. As bibliotecas cumpriam a função não só de preservar essa memória coletiva, mas também a de selecionar as que seriam lembradas e as que seriam relegadas ao esquecimento. E isso poderia ser feito tanto conscientemente com a queima de um livro quanto inconscientemente com o desprezo de um título que não se considerasse digno de figurar no catálogo.A internet substituiu as bibliotecas como memória coletiva, mas não como filtro do que será lembrado. Qualquer texto, imagem, áudio ou vídeo publicado na rede está sujeito a ser lembrado para sempre. A internet não esquece. E o esquecimento das pessoas está condicionado ao desinteresse pelo material publicado. Para sorte ou azar de Carolina, sua intimidade desperta grande interesse do público e estará disponível na internet até que ela - Carolina - seja esquecida.Não há remédio jurídico que possa ser usado para retirar todas essas fotos da rede. A esterilidade do direito em regular o conteúdo da internet não deve ser interpretada, porém, como um obstáculo a ser superado, mas como uma característica inerente à própria arquitetura da rede que deve ser respeitada por qualquer sistema jurídico que se pretenda democrático. Essa memória inolvidável é incômoda e angustiante para Carolina e outras vítimas de pessoas inescrupulosas que utilizam a rede para propagar conteúdos ofensivos, mas é o preço a se pagar por um espaço público em que o poder estatal, e mesmo o poder econômico, não são capazes de censurar. É essa inexorabilidade da internet que faz dela o espaço público por excelência, que não pode ser domado por tiranos, milionários ou celebridades. E é isso que a torna tão efetiva na luta contra regimes autoritários e abusos do poder político e econômico nos países democráticos. Somos a primeira geração capaz de manter viva uma memória apenas com um simples computador ligado à internet. E isso é bom, pois temos uma fonte inesgotável de informação sendo transmitida e armazenada a cada dia que não pode ser censurada por quem quer que seja. No entanto, uma memória coletiva onisciente não dispõe de filtros de conteúdo centralizados, tais como editores e bibliotecários. Uma única pessoa mal-intencionada pode aproveitar-se dessa ausência de controle para destruir reputações publicando notícias falsas ou informações confidenciais protegidas pelo direito à privacidade. E o direito nada pode fazer para apagar os danos causados. A internet é um espaço tão essencialmente público que, uma vez que a informação caia na rede, já não se pode mais privatizá-la. Torna-se insuscetível de reapropriação. O que o direito pode e deve fazer é punir quem se utiliza covardemente da rede para conspurcar reputações ou violar a intimidade de quem quer que seja. Para isso existem os crimes de injúria, calúnia e difamação, mas ainda não há um crime que puna a divulgação não autorizada de fotos íntimas na rede ou em qualquer outro meio. Uma lacuna que precisa ser suprida, sob pena de tais casos serem relegados apenas à esfera cível, na qual os responsáveis poderão ser condenados no máximo ao pagamento de uma indenização pecuniária à vítima. No caso específico de Carolina, no entanto, se for provado que houve o pedido de dinheiro para que as fotos não fossem publicadas, estaria caracterizado o crime de extorsão e o responsável poderia ser condenado a uma pena que varia de 4 a 10 anos de reclusão.Nenhuma punição ou indenização, porém, apagará as fotos de Carolina da rede. Elas se tornaram públicas quando foram divulgadas e o direito não poderá restaurar seu caráter privado. Ao condenar o homicida, o tribunal não ressuscita a vítima. Da mesma forma, nenhum tribunal poderá apagar qualquer conteúdo publicado na rede.A internet não respeita autoridades. Péssimo para quem tem a privacidade ou a honra nela devassada. Ótimo para a democracia.

TÚLIO VIANNA É PROFESSOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG

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