“Amor é muito mais do que o desejo por relação sexual; é o principal meio de escapar da solidão que aflige a maioria dos homens e das mulheres durante a maior parte de suas vidas.” Essa definição cunhada pelo matemático, filósofo e ensaísta Betrand Russell (1872-1970) no livro Casamento e Moral (1929) é uma boa porta de entrada para Canto da Planície, de Kent Haruf (1943-2014), a ser lançado no Brasil pela editora Rádio Londres, com tradução de Alexandre Barbosa de Souza, no fim de março.
Finalista do National Book Award em 1999, Canto da Planície dá início a uma trilogia que contempla também Eventide e Benediction, ainda sem edição nacional. Toda a obra romanesca de Haruf se passa na fictícia Holt, no Colorado, lugarejo inspirado em Yuma, município de apenas 3.500 habitantes.
O título original de Canto da Planície, Plainsong, é uma referência ao cantochão, um estilo de canto sacro criado nos primeiros séculos do cristianismo e um dos mais antigos gêneros musicais ainda praticados no Ocidente. “E, assim como nesse tipo de canto”, nos conta a orelha do livro, “as vozes graves dos coros e dos solistas se alternam, Haruf, igualmente, entrelaça as histórias de vários moradores de Holt”.
Victoria é uma adolescente grávida, abandonada pelo pai de seu bebê e expulsa de casa pela mãe. Tom Guthrie é um professor de História Americana que tem de lidar com um aluno-problema e com um divórcio traumático. Bobby e Ike, filhos de Guthrie, tentam suprir a ausência da mãe fazendo amizade com Stearns, uma senhora a quem entregam o jornal pela manhã. Harold e Reymond McPheron são dois irmãos fazendeiros que passaram suas vidas sem muito contato com outras pessoas depois da morte de seus pais. O início do livro é como um quebra-cabeças desordenado, ou um tabuleiro vazio, onde Haruf vai posicionando seus personagens como um hábil titereiro.
Ao mesmo tempo em que costura histórias a princípio independentes debaixo do nariz do leitor, o autor nos faz criar empatia com aquelas pessoas simples e, acima de tudo, solitárias. Como é regra em toda a sua obra, Canto da Planície é um livro sobre a busca pelo afeto — não necessariamente um amor romântico, como indica a definição de Bertrand Russell, mas uma fuga do terrível isolamento em que seus personagens vivem.
Em dado momento, Harold diz ao irmão: “Olhe para nós dois. Velhos solitários. Dois solteirões decrépitos aqui neste fim de mundo, a trinta quilômetros da cidade mais próxima, que, por sua vez, também quando se chega lá, é um buraco.” É comovente o esforço que eles fazem, quando acolhem a gestante Victoria em sua fazenda, para engatar algum assunto com ela — tentam falar sobre as cotações da bolsa de valores que o locutor havia informado no rádio; sobre como vendem os grãos que produzem em sua propriedade; “e, assim, os dois irmãos McPheron continuaram explicando sobre matadouros, gado de corte e carne selecionada, novilhas e boi de engorda”.
Canto da Planície não se passa em nenhuma época específica, mas para leitores atuais vivendo em grandes metrópoles, o livro é, ao mesmo tempo estranho e familiar. Fala de um tempo que já não mais existe para a maioria da população urbana, e algumas cenas chegam a ter descrições quase naturalistas (“Então se posicionou atrás do brete e dobrou o rabo da vaca sobre o dorso. Enfiou uma mão dentro dela e retirou o estrume macio, quente e verde, avançou ainda mais profundamente para sentir se havia um bezerro”), mas aborda a tão decantada questão de estarmos sós em meio às outras pessoas, como bem ilustra o diálogo do professor Guthrie com Judy, funcionária da escola com quem ele sai alguns meses após o divórcio: “Por que você veio hoje?” “Não sei. Estava me sentindo sozinho, acho.” “Mas não estamos todos, afinal?”
O interessante é que o diminuto tamanho de Holt é usado por Haruf para explorar a aguda perversidade das fofocas — rumores correm as ruazinhas da cidade, comentários maldosos assolam a intimidade dos habitantes, encontros ocasionais são inevitáveis. Nascido no Colorado, Haruf capta bem a atmosfera rural do oeste americano, e transmite o jeito árido de falar em sua prosa. A maneira com a qual ele suprime as separações entre as vozes do narrador e a dos personagens é quase uma alusão ao canto.
Esses elementos todos foram se refinando na obra do autor até chegar ao seu último livro, Nossas Noites, publicado originalmente em 2015 e lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2017. Escrito em menos de dois meses por Haruf, depois do diagnóstico de um câncer que o mataria, o romance deu origem a um filme de Ritesh Batra produzido pela Netflix que reedita a lendária parceria de Jane Fonda e Robert Redford. Na trama, dois vizinhos idosos e viúvos decidem começar a dormir juntos, não como uma proposta sexual, mas porque as “noites são a pior parte”.
Ler Kent Haruf é desnudar um dicionário de definições de amor entre pessoas díspares.