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Capitalismo: com ou sem cafeína?

Nosso hedonismo castrado não entende crises como a que hoje abala o mundo financeiro

Por Laura Greenalgh
Atualização:

Para que serve um filósofo hoje? Slavoj Zizek é rápido no gatilho, prezados leitores. Saca do coldre e dispara: "Nada". Desligue-se o gravador e paremos por aqui. Mas então vem a saraivada: "Pensam que os filósofos têm respostas para tudo. Eu não tenho. O que faço é propor indagações. Nosso problema não é buscar respostas verdadeiras, mas livrarmo-nos das falsas perguntas". A explicação é feita aos pulos, entremeada de exclamações e rompantes de bom humor. Nascido em 1949 na cidade de Liubliana, hoje capital da Esvolênia (na ex-Iugoslávia), Zizek é festejado como a grande novidade da filosofia européia das últimas décadas, fama que tem a ver com os cursos que ministra em universidades americanas como Colúmbia e Princeton. Filósofo, psicanalista, sociólogo, crítico cultural e cinéfilo de longa estrada (um perito em Hitchcock), ele chegou a se candidatar à presidência da Eslovênia, mas as urnas foram sábias ao mandá-lo de volta para casa, ao encontro dos livros. Escreve muito. Tão apaixonadamente como fala. Na semana passada, Zizek passou pelo Brasil para lançar o livro Visão em Paralaxe (ed. Boitempo). É trabalho relativamente recente, numa obra já com dezenas de títulos. Na agenda do lançamento, deu uma palestra no câmpus da UFRJ, com auditório superlotado e ouvintes ilustres, entre eles o compositor Caetano Veloso. Depois, em São Paulo, gravou um Roda Viva na TV Cultura, onde, entre afirmações de impacto, explicou por que "detesta" o carnaval brasileiro, a onda neobudista e o que há de subliminar na imagem de herói de guerra do republicano John McCain. Na véspera do programa, concedeu esta entrevista exclusiva ao caderno Aliás. Bicho político, define-se como um "comunista pessimista", rindo às pampas do cruzamento. "Sabe, pintou aquela crise na intelectualidade européia de, na velhice, voltar às origens. Gilles Deleuze morreu escrevendo sobre Marx. Gianni Vattimo até parou de falar em religião para revisitar o passado comunista. Eu, para dizer a verdade, voltei a ser hegeliano. Profundamente hegeliano." Isso tem a ver com a "análise paraláctica da realidade", que propõe no livro, correndo o risco de afugentar os leitores mais assíduos. Inclusive Caetano. Mas o que Zizek desenvolve é um método de interpretação: trata-se de chegar a ponto de vista sempre mutável, localizado entre dois outros pontos que se confrontam, sem mediação possível. Difícil? Aviso aos leitores de primeira viagem: as formulações do filósofo espantam, mas os exemplos são diretos, simples e bem divertidos. Falando em paralaxe "As pessoas perguntam por que dei esse nome ao livro e a pista está no título da introdução: "O materialismo dialético bate à porta". Hoje nosso grande problema filosófico chama-se Hegel. Interpretações clássicas de seu pensamento já não funcionam, contudo preciso voltar a ele: a análise por paralaxe não enxerga a sociedade como um bloco unitário, mas como algo fraturado. Ela nos coloca diante do fato de que toda verdade é parcial. Sendo parcial, não podemos ser neutros. E, não sendo neutros, precisamos nos engajar. Volto a antigas questões do hegelianismo, avançando por outros campos de estudo, como o cognitivismo, ainda esnobado pelos psicanalistas. Cérebro, cérebro... "Quando falo de cognitivismo, falo de estudos do cérebro e genética. Cientistas hoje podem conectar seu cérebro a um computador. A máquina não vai ler pensamento, mas já pode registrar ordens cerebrais básicas, como ?senta?, ?levanta?, ?vire?. Investiga-se também a possibilidade de videogames mais simples serem acionados pelo cérebro. Isso mexe com nossa identidade, porque começaremos a nos sentir divinos. Até hoje admitimos que apenas um ser, Deus, pode pensar algo e fazer acontecer. Começa a não ser bem assim... Imagine quanto as ciências do cérebro poderão servir a projetos militares? Já pensou nisso? Pois bem, estudo o cognitivismo - e me baseio nos primeiros cognitivistas, não em best-sellers como (o filósofo americano)Daniel Dannett - para saber em que ponto exato esse campo científico vai precisar da psicanálise. Procuro o momento em que o efeito revela a causa. Fukuyama e o fim de tudo "Muito intelectual diz que Francis Fukuyama (filósofo e economista) é um idiota por ter previsto o fim da história. E depois sai por aí se comportando como um ?fukuyamista?, não entendo. No passado, quando éramos jovens e esquerdistas, procurávamos o socialismo com face humana. Hoje procuramos o capitalismo liberal de face humana: queremos bem-estar, trabalho, educação, saúde, previdência, sem questionar o edifício do capitalismo liberal. Então, por que atacar Fukuyama? Anunciar o ?fim das coisas? é um comportamento que se repete na história, embora também seja uma idéia característica da pós-modernidade: Marx, no seu tempo, vislumbrou o fim do capitalismo. Há cem anos Lenin disse que o imperialismo dava o último suspiro. Mao, 50 anos atrás, previu a decomposição do capitalismo no prazo de uma década. E o capitalismo está aí. Com problemas, mas com capacidade de se reinventar. O grande enigma do sistema, hoje, é o que vai acontecer com a China. Até quando ela vai se manter dentro do modelo autoritário? Nietzsche dizia que quanto mais dinâmico for o capitalismo, mais ele necessitará de democracia. Então concluo que a democracia chinesa chegará em dez anos. Isso terá um impacto tremendo no mundo. Fabricação de bolhas "Ah, não estou abalado com o tremor dos mercados. Eles que se ajeitem. O que me interessa é pensar noutra dimensão. A crise financeira atual talvez seja eco da crise de 2001, aquela da bolha da internet. Lá atrás assistimos à queda violenta das ações do setor digital. E o que fez o governo americano? Em vez de cuidar para que a economia voltasse a funcionar com equilíbrio, direcionou recursos para turbinar o setor imobiliário. Gestou outra bolha. Estamos recebendo mais uma dura lição de que a economia não pode ficar solta, ao sabor dos mercados. Mais do que nunca, a economia precisa da política. Veja no que se transformou Bill Gates no espaço de alguns anos. Virou o maior proprietário privado no domínio intelectual. Hackers me dizem que outros sistemas operacionais são bem melhores que o Microsoft, mas Gates conseguiu impor seu modelo, garantiu a propriedade de algo que não foi feito por ele, mas por muitos, vende para o mundo todo e tornou-se o homem mais rico do planeta. Dominou o mercado global e até subjugou o governo americano, que tentou conter sua escalada. Casos assim precisam ser estudados. Chamem Freud, Lacan... "Só se fala em ?crise de confiança? dos mercados e não há nada de estranho nisso. Ao mesmo tempo em que o capitalismo é materialista, é também profundamente idealista. Materialista no sentido de dinheiro, da competição, do lucro. E idealista no sentido de que as relações ainda se dão na base da confiança e credulidade. O problema é mais profundo: na sociedade liberal, você precisa seguir formas de polidez, convivência, regras do que fazer e do que não fazer, ou você é expelido. Não existe a liberdade 100% individual, de fazer o que quiser, como e quando quiser, mas a liberdade individual com substância social. O problema nos Estados Unidos é que se achou por bem tornar essas regras explícitas nos códigos do politicamente correto, quando há regras sociais que até precisam ficar implícitas. Só que os mercados nada têm de politicamente corretos. Essa ?crise de confiança? precisaria ser analisada por gente da psicanálise. Economistas não darão conta. TOLERÂNCIA, O ENGODO "Quer outro paradoxo? Vivemos nessa grande sociedade livre, no mundo ocidental, mas nunca erguemos tantas barreiras como agora: destruímos o Muro de Berlim, entretanto erguemos outro para separar os palestinos, outro para impedir a entrada de mexicanos nos EUA, sem falar nos muros invisíveis que cercam imigrantes na Europa. Em termos ideológicos, a sociedade não está me pedindo nada e ainda me diz que eu posso tentar uma espiritualização ao estilo dalai-lama. Quer ver outra mistificação? O conceito de tolerância. Cai bem: seja tolerante com este ou aquele. Ridículo! Há uma brutalidade intrínseca no conceito de tolerância, que significa: ?Não se aproxime de mim, fique onde está e tudo bem?. Felicidade 'fat free' "Com o que você sonha? Produtos. Muitos. Eles garantem seu prazer, mas também liberam substâncias perigosas. Você vai ter que optar: sorvete com açúcar ou sem açúcar? Cerveja com álcool ou sem álcool? Chocolate com gordura ou sem gordura? São variações desse hedonismo castrado a que estamos submetidos. Você quer o prazer, mas vai pagar um preço por ele. Seguindo essa linha de raciocínio, penso que estamos na era da política descafeinada. Há uma enormidade de problemas sociais a enfrentar, mas daí convocamos nosso multiculturalismo liberal que parece tudo resolver. Eu tolero o Outro, deste que seja um Outro descafeinado também, desprovido de tudo aquilo que possa me incomodar. Não é à toa que, tanto nos Estados Unidos quanto em países europeus, multiplicam-se os cutters, pessoas que se automutilam, cortam a própria pele com facas e navalhas. Não é protesto, nem seita, mas a tentativa de restabelecer a conexão consigo mesmo. Não concordo em tudo com Giorgio Agamben (filósofo italiano), mas esse ?invisível social? do qual queremos distância, e até negamos a existência, é uma tendência perigosa da globalização mundial. Crise virtual, efeito real "Dinheiro para acumular, comprar, gozar. Agora, dinheiro para acalmar os mercados, talvez amanhã para nos livrar do fim do mundo. Certo, mas alguma coisa mudou nesse jogo. Um aspecto que precisamos considerar é a virtualização do dinheiro. Não que se tenha parado de imprimir cédulas, mas virou coisa virtual. Tente imaginar o que seriam, em termos espaciais, US$ 700 bilhões, a ajuda do Tesouro americano aos bancos. Impossível. Mas você acredita que esse dinheiro existe, não? Vivemos dias em que operações financeiras virtualizadas são disparadas para nos poupar de tragédias reais. O dinheiro vai sumir em seu aspecto físico. Vai perder força simbólica e, por isso mesmo, sistemas financeiros tenderão a ficar mais vulneráveis. Lembra do tal bug do milênio? Foi a primeira crise global da pós-modernidade. Disseram que os sistemas tecnológicos, todos, iriam desaparecer. Isso foi um fiasco, mas a crise existiu. Naquela passagem de ano eu estava em Nova York e fiquei ligado no ano-novo que rompia em países do outro lado do mundo. Ok, gente, parece que o ano virou bem na Austrália. Virou bem no Japão... Rudolph Giulianni, que era prefeito de lá, fez um comunicado à população dizendo que estava preparado para qualquer emergência. Depois foi se esconder num abrigo nuclear nas redondezas. Não é o máximo? Precisamos nos habituar a catástrofes em que o real não acontece, mas somos afetados. Falsas urgências "Interpretamos a realidade com categorias antigas - liberalismo, marxismo, niilismo, que hoje em dia se diz que está crescendo... Bobagem, nunca fomos tão dispostos a acreditar em alguma coisa. Minha recomendação é: na crise, volte-se para dentro. Volte às teorias. É tempo de pensar. Rejeito as urgências que nos impingem: ?Oh, meu Deus, tem gente passando fome, estão ameaçando a saúde do planeta, os bancos vão derreter, há um novo vírus....? Chega! É evidente que preciso me preocupar com a pobreza, mas deixe-me pensar sobre o que fazer. Não me imponham o discurso da caridade, que muitas vezes significa ?faça, mas não pense?. É a situação que se criou agora: despejam bilhões em instituições financeiras, sem nem ao menos entender o problema. Das coisas de Deus "Difícil ser ateu hoje, basta ver como as religiões mobilizam mais do que a política. Por isso eu, ateísta confesso, defendo o legado do cristianismo. A principal função de uma religião é dar sentido à experiência humana. Nesse sentido, é completamente original a idéia do Deus que morre, depois se transforma em Espírito Santo e sobrevive na comunidade dos fiéis. Aquela comunidade de cristãos dos tempos de Cristo foi o primeiro partido revolucionário de que se tem notícia. O poeta Paul Claudel, grande conservador francês, disse: ?Deus nada pode sem nós?. Isso me fascina, não à toa escrevi três livros sobre cristianismo. Ouviu falar em neuroteologia? É um campo de pesquisa em que, pela manipulação de neurônios, tenta-se despertar no cérebro sensações da experiência religiosa. Neuroteólogos acham que, dentro de anos, teremos a experiência mais transcendental de Deus. Vamos ver. Darwinismo "Sou a favor. Mas do darwinismo autêntico, não dessas versões que circulam por aí. Autêntico como o de Stephen Jay Gould, que parte do princípio de que a natureza é o grande caos, então você pode vencer por ser mais forte, não por ser melhor. Até porque o meio pode mudar. E, mudando, aquilo que era a minha força, poderá se converter em fraqueza. Questiono esse falatório dos materialistas agressivos, muito na moda nos Estados Unidos, como Richard Dawkins, Daniel Dannett, Christopher Hitchens, Sam Harris. Porque ficou ?fashion? matar Deus. Só que esse materialismo nem sequer reflete o que anda pensando a maioria dos americanos - infelizmente, a maioria continua enlouquecida, acreditando que Deus criou o mundo com hora marcada. Assim como tem a turma do materialismo radical e do criacionismo louco, tem a turma que surfa num orientalismo difuso. Então eu olho para o legado do cristianismo. Que, na sua origem, era ateu." Efeito real "Precisamos nos preparar para as panes virtuais que de fato nos afetam" Que tempos... "A economia hoje precisa da política, que, por sua vez, mobiliza menos que a religião"

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