Carta a um amigo conservador

Não sou, caro, um fanático da rede. Mas é o fim das demarcações geopolíticas que fará a cidadania global

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Por Rodrigo Lara Mesquita
Atualização:

Não quero polemizar e muito menos convencê-lo. Mas, depois de 30 anos trabalhando com informação nos meios tradicionais e na nova mídia, não posso me furtar de lhe repassar a minha visão sobre o momento que estamos vivendo. Entendo que a sociedade contemporânea convive hoje, como sempre ocorreu em outros períodos da nossa história, com estruturas e costumes do passado. Estruturas que remontam ao feudalismo e até mesmo a épocas mais remotas. Mas o que manda, o que dá o tom e forma o trend social, econômico e político são as dinâmicas do futuro e não do passado. Isso, no nosso caso, significa o capitalismo entremeando-se na rede. Alvin Toffler, num recente artigo publicado no Estado em que criticava a miopia da campanha de todos os candidatos à presidência dos Estados Unidos, apontava que o industrialismo norte-americano foi superado pela área de serviços e o início da estruturação da chamada economia do conhecimento em 1956. Para ele, o sistema de saúde, de educação e até mesmo o sistema político norte-americano estão falidos. É um mundo que ficou para trás, apesar de isso não significar a estruturação do novo do dia para a noite. Toffler considera que se está formando uma nova sociedade com comportamentos e procedimentos em formação "na estruturação da família, nos relacionamentos dos jovens, com novos conceitos de sexo, raça e idade, novas estruturas familiares e novas formas organizacionais e culturais". Enfim, um novo mundo que, segundo ele, ainda não entendemos e não sabemos para que direção caminha. Pessoalmente, costumo fazer comparações com o meu período de vida. Em relação à minha cidade, tenho um sentimento de que hoje vivemos numa estrutura social que não contribui ou contribui muito pouco para o desenvolvimento e fortalecimento da cidadania e da solidariedade, para falar só de dois conceitos básicos para a civilização. Não era assim na São Paulo de 50 anos atrás. Naquela época, o ambiente era mais favorável para provocar e fortalecer relacionamentos na sua rua, na quadra, no bairro. Não dava medo andar nas ruas, não era banal ser assaltado ou seqüestrado a qualquer momento. São Paulo não tinha 20 milhões de habitantes, não havia um contraste tão dramático entre o centro e a periferia e a sociedade paulistana era infinitamente menos fragmentada, diversa e complexa. Poucas semanas atrás, li no Estado uma entrevista com a dramaturga Leilah Assumpção. Num determinado trecho, ela comenta as peças teatrais que, na visão dela, tinham contribuído para uma reflexão sobre a situação das mulheres na sociedade contemporânea. Citava entre outras a peça Fala baixo senão eu grito e comentava: "Naquela época, era o ano de 1969, tratava da mulher. Hoje é sobre a profunda solidão da alma humana." Rápido demais, não é? Solidão, solidão, solidão na sociedade da comunicação. No dia seguinte, fui com um grupo de amigos ao Bar Brahma, lá na esquina da São João com a Ipiranga. Mesmo ali, numa noite em que todos procuravam diversão, você podia sentir a solidão, a ansiedade por não se sentir parte de algo, que ronda todos nós. Um grupo de jovens, numa mesa ao lado da minha, comentava isso. O excesso de individualidade, a falta de objetivo que não seja monetário, o imediatismo, a cultura da esperteza, a competitividade ao extremo. Em 1992, quatro anos depois de começar a trabalhar com tecnologia, informação e relacionamento com o público e do público, vindo de uma carreira tradicional de jornalista de meios impressos, passei a ser o representante do Grupo Estado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) - Media Lab. Estava diretor da Agência Estado e tinha me voltado para a evolução das tecnologias de informação e comunicação porque estava convencido de que o futuro da empresa da minha família passava por aí. Éramos sponsors do programa News in the Future, que em pouco menos de 10 anos evoluiu para Information: Organized e depois Simplicity. Lá, tive o prazer de ouvir pela primeira vez pessoalmente o cientista Nicholas Negroponte. Ele defendia a tese já naquela época de que a globalização ou a aceleração deste processo por causa da evolução das tecnologias de informação e comunicação privilegiava antes de tudo o glocal. Confesso que na época não entendi. Ele analisava a fragmentação da sociedade contemporânea e a capacidade de as velhas instituições, criadas e desenvolvidas a partir de meados do século 19, quando surgiu a idéia de Estado Nacional, sustentarem de forma adequada a sociedade contemporânea. Foi lá também que pela primeira vez ouvi comparações entre o comportamento das formigas e o nosso futuro. Para ele, o conceito de nação tinha sido apropriado para este período histórico no qual houve uma transição do poder das cidades para um governo central de uma região (o historiador e financista Jaques Attali aborda este processo num livro delicioso - 1492). A sociedade do futuro, para Negroponte, será mais atomizada e fragmentada, com as suas unidades mais autônomas, se chegarmos lá. Não colocava esta visão de forma dogmática, é claro. Era todo um centro de pesquisa, no centro de inteligência que é o MIT, dedicado à pesquisa e análise dos impactos da evolução das tecnologias de informação e comunicação sobre a sociedade contemporânea. O primeiro estudo sobre o processo de formação de redes de forma autônoma e natural em países periféricos que eu vi também foi lá. Eles falavam de redes orgânicas. Isso deve ter sido por volta de 1998. Depois disso, criou-se um grupo de trabalho, patrocinado pela British Telecomunication (BT), para estudar este fenômeno social sustentado pela tecnologia. Ao mesmo tempo havia outros grupos de cientistas fazendo pesquisa em torno do que é inovação e quando ela acontece e o mesmo para o conceito de inteligência coletiva. Tenho estes estudos comigo, meu caro amigo. Posso lhe dar uma cópia se você tiver interesse. Era um enorme programa patrocinado pela BT. Transcrevo abaixo um conjunto de extratos de dois destes programas de pesquisa. Pode-se dizer em termos jornalísticos que se trata do lead de cada um dos programas. SOBRE COMUNICAÇÕES - "As comunicações estão prestes a se tornar características pessoais e embutidas no mundo que nos cerca. As novas tecnologias nos permitem construir dispositivos com e sem fio, que são cada vez mais instalados e presentes, praticamente sem limites. Não precisam de um backbone ou infra-estrutura para funcionar. Ao invés disso, utilizam vizinhos para improvisar tanto a distribuição de bits como a geolocalização. Isto redistribui o domínio das comunicações, de um provedor integrado verticalmente, para o usuário final ou dispositivo final, segregando a distribuição de bits e os serviços. As comunicações podem se tornar algo que você faz, ao invés de algo que você compra." De Andrew Lippman e David P. Reed, pesquisadores do laboratório de mídia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o Media Lab. SOBRE INOVAÇÃO - "O processo de inovação, muitas vezes, ocorre em ondas, quando os ambientes social e econômico sincronizam-se em torno de uma oportunidade criada pela tecnologia. Isto ocorreu na década de 1930, com o telefone, na década de 1950, com o automóvel, e na década de 1980, com o computador pessoal. O setor de comunicações está face a uma ruptura semelhante. Assim como no passado, gigantes verticalmente integrados, amarrados a tecnologias e serviços centralizados ou de grande porte, estão sendo suplantados por novatos armados com novas idéias sobre propriedade individual, adoção incremental e rotatividade instantânea. A tecnologia permite esta mudança, tornando a inteligência local mais barata; a sociedade transforma esta capacidade em algo que lhe é útil; o potencial para investimento econômico difuso estimula novas opções." Também de Andrew Lippman e David P. Reed. Minha formação é em história. Comecei a atuar como jornalista há pouco mais de 30 anos. Entre o jornalismo tradicional dos meios impressos e o que se sustenta em tecnologias digitais e telecomunicação. Nem sempre este é baseado em conversação e estruturação de novas formas de relacionamento. Muito do que está na rede, como você sabe, é estruturado em processos de distribuição de informação broadcast (ou seja: só ida, sem interatividade). Algumas vezes porque isso é necessário. É um serviço de informação e ponto. Outras vezes, é por burrice, ignorância, arrogância e outros bichos desta espécie. Quanto ao lixo que está na rede, ele permeia todos os processos de comunicação. Não é um privilégio da rede. O pior, aquele que não tem o que fazer e impede qualquer ação construtiva, é o que se impregna por falta de sorte ou por responsabilidade nossa nas nossas cabeças. Um forte e carinhoso abraço. PS: Você já leu o livro do Alan Greenspan, Na era da Turbulência? Vale a pena, de certa forma ele dirigiu os rumos da economia mundial durante 19 anos. Logo no primeiro capítulo faz uma síntese dos impactos da recente e avassaladora evolução das tecnologias de informação e comunicação sobre a sociedade contemporânea e especialmente a economia norte-americana: "Nas últimas duas décadas, a economia americana se tornou mais resiliente a choques. A desregulamentação dos mercados financeiros, a maior flexibilidade dos mercados de trabalho e, mais recentemente, os grandes avanços das tecnologias de informação aumentaram a nossa capacidade de absorver rupturas e de nos recuperarmos do choque." Mais adiante, comenta: "Várias forças globais alteraram aos poucos, às vezes de maneira quase sub-reptícia, o mundo conhecido. A mais visível para quase todos nós, de maneira quase diária, tem sido a adoção cada vez mais intensa de novas tecnologias, como telefones celulares, computadores pessoais, correio eletrônico, internet e assistentes pessoais digitais... Estas novas tecnologias não só descortinaram novos horizontes para as telecomunicações de baixo custo, mas também facilitaram avanços em finanças, que ampliaram em muito nossa capacidade de direcionar poupanças escassas para investimentos de capital produtivos, fator crítico para a rápida expansão da globalização e da prosperidade." Não se pode dizer que é otimista sobre o futuro. Ele comenta já neste capítulo as escolhas que teremos que fazer e, é claro, o preço a pagar em cada uma das situações: "A competição é estressante, pois os mercados competitivos criam vencedores e perdedores. Este livro tentará examinar os efeitos do choque entre a economia globalizada em rápida transformação e a natureza humana rígida e constante. O sucesso econômico do último quarto de milênio é o resultado desta luta, assim como o é a ansiedade decorrente dessas mudanças aceleradas." Como se vê, meu caro amigo, a sociedade global em formação iniciou seu processo de superação dos Estados Nacionais através da integração acelerada da comunidade financeira internacional. A primeira mercadoria a se globalizar totalmente foi o capital, em função do contínuo desenvolvimento do comércio e, como conseqüência, da exponenciação dos processos de interação social que a rede permite e fomenta. O ciclo industrial é apenas um desdobramento deste processo iniciado no século 15. Este processo irreversível reproduz-se analogamente em todos os aspectos da atividade humana, ampliando exponencialmente nosso referencial cultural. Mas só atingirá o apogeu do seu ciclo quando for capaz de superar as resistências nacionalistas, representadas pelas demarcações geopolíticas. Quando isso for alcançado, aí sim a cidadania será global e estaremos vivendo numa nova sociedade. Não me considere, meu caro amigo, um entusiasta ou fanático da rede. Não sou. Minha procura e meus sonhos estão nos pontos perdidos da história. Mas, como Marshall McLuhan, considero que o meio ambiente do homem é dinâmico e não é só composto por elementos da natureza. É composto também pelo que criamos e isso, gostemos ou não, contribui para o condicionamento das nossas vidas. *Rodrigo Lara Mesquita é jornalista. Atua hoje na rede social PEABIRUS (www.peabirus.com.br). Seu e-mail é rmesquita@peabirus.com.br

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