Cartas de James Joyce revelam relação com sua editora Harriet Weaver

Escritor recebeu auxílio moral e financeiro de sua editora, mostra correspondência

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Conhecida como editora e ativista política, a inglesa Harriet Shaw Weaver (1876-1961) viveu o bastante para confirmar o acerto de sua aposta no escritor irlandês James Joyce (1882-1941). Quando o poeta norte-americano Ezra Pound (1885-1972) procurava novos colaboradores para The Egoist e descobriu Joyce, Harriet concordou em publicar na revista que ajudou a manter – e da qual se tornou editora – capítulos do romance Um Retrato do Artista Quando Jovem, em 1914, dois anos antes de sua publicação em livro. Nascia aí a amizade entre o irlandês de formação católica e a editora comunista que abjurou sua formação burguesa – mas não a herança familiar, com a qual ajudou a bancar a carreira do escritor, inclusive a publicação de Ulisses no exterior, quando as gráficas do Reino Unido se recusaram a imprimir o livro por causa de seu polêmico conteúdo.

James Joyce longe de Dublin, cidade que odiou e amou Foto:

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Harrriet não era militante do Partido Comunista ao conhecer Joyce. Era uma mulher rica, filha de um médico e herdeira de uma fortuna, que usou muito bem, ajudando o autor de Ulisses até na hora da morte – seu enterro foi pago com seu dinheiro. Essa amizade durou até a primeira leitura de Finnegans Wake, quando o relacionamento entre os dois foi abalado pela reserva com que Harriet recebeu o experimental livro de Joyce. Numa carta datada de 14 de novembro de 1927, a editora de Ulisses, Sylvia Beach, critica a amiga, que adorava, por ter desaprovado a publicação em série de Finnegans Wake numa revista de vanguarda parisiense, justificando que Joyce escreveu para ela o livro (só publicado em 1936) – e não teria se importado se outra pessoa não gostasse dele. O fato é que Finnegans Wake detonou a amizade entre James Joyce e Harriet Weaver.

Essa carta não integra a antologia organizada pelos escritores e tradutores Dirce Waltrick do Amarante e Sérgio Medeiros, Cartas a Harriet, lançamento da editora Iluminuras que compila a correspondência entre Joyce e sua editora entre 1914 e 1936, justamente o ano fatídico da publicação de Finnegans Wave em formato de livro. Mas há uma dezena de cartas em que as diferenças entre os dois parecem pesar menos – e mostram, segundo os organizadores do livro, “a real dimensão do auxílio moral e financeiro” que o romancista irlandês recebeu de Harriet Shaw Weaver.

Extraídas dos três volumes de Letters of James Joyce e Selected Letters of James Joyce (ambos publicados pela Viking Press), as cartas falam de outros autores além do próprio. Joyce comenta dramas de Yeats e Ibsen (analisado por ele, aos 17 anos, na revista Fotnightly Review), fala mal de Jung e Freud (chamados, respectivamente, de o Tweedledum suíço e o Tweedledum vienense) e admite ser tão antiquado como o escultor romeno Brancusi. Deplora ainda “as maneiras do feminismo moderno”, como Brancusi, e reclama dos gráficos que não entendiam seus neologismos e subvertiam sistematicamente as suas invenções literárias. 

Joyce reclama ainda dos editores. Numa carta de 6 dezembro de 1915, em que agradece a proposta de Harriet de publicar Um Retrato do Artista Quando Jovem pela Egoist Press (que nunca publicara um livro antes), Joyce revela que está escrevendo Ulisses e diz nunca ter recebido dinheiro dos seus dois editores, lamentando que seu livro Dublinenses tenha vendido só 26 cópias no Reino Unido. Três anos depois, ele acusa o recebimento de um cheque da editora Harriet e diz que cederia alegremente a ela os direitos de Ulisses – “ainda que eu esteja certo de que em muitos sentidos seja um presente de grego” (o romance só seria lançado em 1922 pela editora norte-americana Sylvia Beach, fundadora da parisiense Shakespeare and Company).

As cartas mais emocionantes, porém, não falam de literatura, mas dos seus filhos Giorgio e Lucia. Diagnosticada esquizofrênica, Lucia morou algum tempo com a protetora de Joyce, mas, em 1930, teve um ataque histérico e teve de ser internada num hospital psiquiátrico – Joyce se recusava a admitir a doença da filha, a ponto de um ano antes julgar que todos estavam loucos por desqualificar Lucia de um concurso de dança. Em 1932, ele removeu Lucia e sua enfermeira às escondidas de uma clínica e pediu 100 mil francos emprestados para cuidar de uma nova internação. Na última carta do livro, de 9 de junho de 1936, Joyce manda outra conta gigantesca para Harriet, relacionando os gastos com os médicos de Giorgio, que acabara de operar a garganta e admitindo, finalmente, que “alguma doença misteriosa” foi aos poucos tomando conta dos seus dois filhos. Muitos amigos destacaram a generosidade da editora. Pena que ela nunca tenha publicado suas memórias.

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