PUBLICIDADE

Editora 34 lança todos os contos de Chalámov

Em seis volumes, a obra revela experiências do escritor nos campos de trabalho forçado da Rússia stalinista

Por
Atualização:
Escritor Varlam Chalámov em sua primeira prisão, em fevereiro de 1929 Foto: Reprodução

A edição dos seis volumes dos Contos de Kolimá, pela Editora 34, dá aos brasileiros a oportunidade de apreciar a obra essencial de Varlam Chalámov - que a jornalista ucraniana Svetlana Alexiévitch, Prêmio Nobel de Literatura de 2015, classificou como “o maior escritor do século 20”.

PUBLICIDADE

A centena de contos retrata a experiência de Chalámov nos 17 anos que passou no campo de prisioneiros de Kolimá, um dos mais terríveis do regime de Josef Stálin na União Soviética, a partir de 1937. Não há, nessas histórias, desencanto escancarado com o comunismo. Ao contrário, Chalámov (1907-1982) disse que participou, no gulag, “da grande batalha perdida pela verdadeira reinvenção da vida”. Há um tanto de ironia nessa frase, mas o fato é que o escritor, condenado por diversos crimes de opinião, entre os quais “atividade anti-revolucionária trotskista”, dedica-se menos a questionar a ideologia e mais a expor o colapso moral do campo de prisioneiros, que envolve tanto os algozes quanto as vítimas.

Nesse aspecto, ainda que com resultados muito distintos em termos literários, Chalámov se aproxima de Primo Levi, o químico judeu italiano que dedicou sua vida a preservar a memória do que viu quando esteve em Auschwitz. Levi questiona até que ponto suas lembranças e as dos demais sobreviventes dão conta do que efetivamente ocorreu naquele inferno, inclusive quando se trata de descrever a corrupção primitiva e visceral a que quase todos ali sofregamente se entregavam. 

Kolima Gulag, onde o escritor Varlan Chalámov ficou recluso Foto: Reprodução

Chalámov, talvez para contornar essa impossibilidade, recorre ao simbolismo para retratar a degradação do homem, enquanto ser moral, naquele ambiente. Para Chalámov, há muitas coisas no campo de prisioneiros que um homem “não deve saber” e “não deve ver”, mas caso veja “é melhor morrer”. Como Primo Levi, ele não quer voltar para a sua família porque esta simplesmente não conseguiria entendê-lo. Ainda assim, Chalámov viu e soube - e, à sua maneira, contou o que lhe parecia indizível, de uma forma que Alexander Soljenitsin, autor do clássico O Arquipélago Gulag, em que também relata a desgraça daqueles campos, considera muito mais amarga que a sua.

Em seu empreendimento literário, iniciado em 1954, pouco após sua libertação, Chalámov, um pouco como Chekhov, não se esforça para concluir seus contos nem para lhes conferir sentido claro, cabendo ao leitor o desafio de se ver nas situações expostas com crueza e extrema secura e de perceber que é impossível julgar os atos daquelas pessoas, submetidas a tamanho esgarçamento de sua humanidade - ainda que, ao final, a esperança no triunfo da bondade, essencialmente humana, prevaleça de alguma forma, aqui e ali.

Mas é preciso ter uma determinação sobre-humana para alcançar essa virtude que Chalámov deixa apenas entrever. Não há uma gota de romantismo em sua narrativa, nem mesmo a respeito da amizade, que, conforme suas palavras, só sobrevive de fato enquanto as condições permitem. “Para que a amizade fosse amizade era preciso uma base sólida, formada quando as condições e a vida ainda não tivessem atingido aquela última fronteira, além da qual já não há nada de humano no ser humano, a não ser desconfiança, maldade e mentira”, escreveu ele. Mais adiante, volta ao tema, de forma implacável: “Se a desgraça e a carência reunidas geram amizade entre as pessoas, então isso significa que a carência não é extrema e a desgraça não é grande”. O gulag “não era lugar para fazer amizades”.

O mesmo se dá em relação ao amor. “O amor não voltou para mim. Ah, como o amor está longe da inveja, do medo, da raiva. Como as pessoas precisam pouco do amor”, escreve Chalámov. “O amor vem quando todos os sentimentos humanos já voltaram. O amor vem por último, volta por último, e será que volta mesmo?” Chalámov descreve o único sentimento que realmente importava naquele lugar: “Eu tinha pouco calor. Não havia sobrado muita carne nos meus ossos. Essa carne era suficiente apenas para a raiva - o último dos sentimentos humanos. (...) O que me restou até o fim? Raiva”. 

Publicidade

Tudo então se resumia a ter raiva o bastante para sobreviver. Era o grande imperativo, superior a qualquer consideração moral, política ou ideológica. Essa foi a grande derrota da humanidade, relatada de forma excruciantemente simples por Chalámov. Com ele, a chamada literatura de testemunho, surgida depois das grandes catástrofes totalitárias do século 20, ganha uma dimensão que vai além da necessidade de testemunhar a verdade histórica para impedir o esquecimento. 

Embora relatar o que se passou no gulag seja o que impulsiona Chalámov, como forma de guardar o luto e deixar gravados os crimes que presenciou, os terríveis fatos que ele narra ganham valor secundário ante a constatação, feita por esse notável escritor ao longo de sua obra, de que a vida, tão preciosa, à qual todos se agarram com tanta gana, está permanentemente dependente do simples e incontrolável acaso.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.