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Choque elétrico musical no agito da masmorra

O som mortífero de bandas como Mettalica e Deicide embalam a tortura praticada em Abu Ghraib e Guantánamo

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Na última quinta-feira, os tribunais da Província de Córdoba condenaram à prisão perpétua o general da reserva Luciano Menéndez pelos maus-tratos cometidos em presos políticos durante a ditadura militar argentina. Na próxima quinta, um seminário no Ministério da Justiça, em Brasília, começará a discutir a possibilidade de o Brasil seguir os passos da Argentina, punindo os militares que torturaram e mataram opositores do regime militar aqui implantado há 44 anos. Tortura, nunca mais, certo? Errado. Até mesmo Albert Camus, que condensou o futuro na imagem de um prisioneiro pisoteado por uma bota, ficaria surpreso com sua onipresença em nosso presente. E, mais ainda, com sua adoção pelo governo Bush. Foi-se o tempo em que a tortura parecia uma exclusividade de regimes ditatoriais, de esquerda e direita, e grupos terroristas, laicos e religiosos. As condenáveis técnicas de "extração da verdade" que agentes da CIA passaram anos ensinando a militares e policiais de países emergentes e submergentes viraram rotina em Guantánamo, Abu Ghraib e outras masmorras da guerra contra o terror islâmico. Não sem um toque de originalidade. Um dos instrumentos de tortura mais utilizado nos centros de detenção de suspeitos de terrorismo é a música. Millôr não se cansa de dizer que a música é a única arte que nos ataca pelas costas, que invade nossos ouvidos sem pedir licença. Em algumas enxovias comandadas pelas Forças Armadas dos EUA, ela vem atacando não apenas os tímpanos, mas também o cérebro. É com música amplificada em decibéis estrondeantes que interrogadores norte-americanos tentam, já de algum tempo, quebrar o silêncio de prisioneiros iraquianos e forçá-los a confessar até o que não fizeram. Chamam isso de torture lite (tortura leve), independentemente do tipo de música usada no interrogatório. Já que ninguém física e mentalmente sadio resiste à exposição dos ouvidos a uma mesma música tocada no volume máximo horas a fio, nem sequer Bach, leve é eufemismo. E como no repertório dos torturadores só o rock tem vez, os efeitos das audições são devastadores. Nos anos 70, o IRA (Exército Republicano Irlandês) costumava torturar seus prisioneiros com os mais barulhentos sons disponíveis. A música parece ter sido uma contribuição norte-americana. Em 1993, antes de incinerar os fanáticos adventistas davidianos acantonados numa fazenda de Waco, no Texas, o FBI submeteu-os a uma saraivada de musak: clássicos natalinos com a orquestra de Mitch Miller, plangentes canções de Andy Williams e o mortífero These Boots Are Made for Walking, na voz de Nancy Sinatra. O tenente-coronel reformado da Força Aérea dos EUA Dan Kuehl tentou dignificar a tortura musical como uma invenção divina. Professor de operações psicológicas (ou psyops, no jargão militar) da Universidade de Defesa Nacional, em Washington, Kuehl alega que o emprego bélico, digamos assim, da música foi ensinado por Deus a Josué, que, reza a Bíblia, derrubou a muralha de Jericó com a ajuda de sete cornetas de chifre de carneiro. "O som das trombetas pode não ter derrubado a muralha, literalmente, mas por certo corroeu a coragem dos inimigos", acrescentou o psicólogo, que no mínimo invocou em vão o nome do Santo Pai. Deus nada tem ver com o que maus militares comprovadamente praticam em Abu Ghraib, Guantánamo e num centro de detenção na fronteira do Iraque com a Síria, et pour cause apelidado de Discoteca. No Hit Parade, ou melhor, no Hit! Parade da tortura, o rock pesado, heavy, metal, pauleira, satânico, ocupa os primeiros lugares. Líder absoluto: Fuck Your God, com a banda death metal Deicide, especializada em xingar Deus e insultar todas as religiões. Ela emplacou mais um islamicida sonoro no repertório dos DJs da tortura: Apocalyptic Fear. E outros mais poderia emplacar, falando de "estupros confessionais", "execuções ao amanhecer", "chacina de cristãos" e "suicídio". O grupo Metallica também entrou duas vezes no Hit! Parade, com Enter Sandman e Overkill. O velho Queen lidera as preferências em Camp Cropper, no Iraque, com We Are the Champions, cuja letra, estranhamente, é uma confissão de inocência: "I?ve paid my dues/I?ve done my sentence/But committed no crime" (Paguei minhas dívidas/cumpri minha pena/mas não cometi crime algum). Na quarta colocação, Killing in the Name Of, com a banda rap/metal californiana Rage Against the Machine, que indiretamente se refere aos racistas da Ku-Klux-Klan. Mais adequada é a segunda contribuição da banda à tortura musical: Bombs over Baghdad, na nona colocação. Fechando os Top 10, o hard rock australiano do AC/DC The Razor?s Edge e o heavy metal do grupo texano Drowning Pool Creeping Death. O inglês David Gray não entendeu por que sua I Love You Babe foi parar nos alto-falantes de Abu Ghraib. Identificada como futility music (abobrinha musical), tem fama de eficaz na lavagem cerebral de prisioneiros metidos a durões. Gray a compôs para Barney, o bonachão dinossauro violeta do desenhado animado, e seus versos só se referem, ainda que ironicamente, a amor, beijos e abraços familiares. Haj Ali, aquele prisioneiro de Abu Ghraib flagrado nu e algemado, foi forçado a ouvir I Love You Babe no volume máximo durante não sei quantas horas. Coincidência ou não, foi com essa música que os londrinos saudaram Bush em sua recente passagem pela Inglaterra, o que levou Clifford Stafford Smith, mestre de cerimônias do Meltdown Festival, realizado em Londres no mês passado, a propor a confecção de um CD, intitulado Now That?s What I Call Torture (Tortura é isso aí), com as oito músicas favoritas do presidente norte-americano e a ser plugado em vocês sabem quem. Gray também ficou surpreso com a apatia de seus colegas de Hit! Parade diante do indevido uso de suas gravações, embora reconheça que só lhes reste protestar e assinar petições. James Hetfield (co-fundador do Metallica) e Steve Asheim (baterista do Deicide) ultrapassaram a apatia. Na contramão. Para Hetfield, os iraquianos merecem ser punidos porque "não estão acostumados com a liberdade". Asheim acha que os prisioneiros de Guantánamo e Abu Ghraib agüentam tudo, "não são um bando de colegiais, mas guerreiros treinados para resistir à tortura, que esperam ser queimados com tochas e ter os ossos quebrados". Admitamos que estivessem brincando. Com tortura, porém, não se brinca.

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