CIA financiou revistas culturais pelo mundo no século 20

Há 50 anos, era fundado o Congresso pela Liberdade da Cultura, que fomentou publicações alinhadas aos interesses americanos em 35 países

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Por Sérgio Augusto
Atualização:
Bandeira americana feita com lâmpadas de LED pelo artista Leo Vilareel em 2008 Foto: Leo Vilareel Org

A CIA (acrônimo em inglês da agência central de inteligência dos EUA) sempre metida em encrencas. Agora, em mais um desdobramento da Guerra Fria, arrumou o maior inimigo doméstico de sua história: o presidente americano, supostamente eleito com a ajuda do presidente russo Vladimir Putin. 

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Será que Trump comparecerá à festa dos 70 anos da agência daqui a três meses? 

Por falar em festa, essa não é única efeméride redonda da CIA no ano do centenário da Revolução Bolchevique. Mas o outro aniversário não é para ser celebrado, e sim esquecido – exceto, evidentemente, pelas editoras, que não se cansam de explorá-lo em livros. Está fazendo 50 anos que a legendária revista Ramparts transformou em escândalo uma denúncia do New York Times envolvendo a agência e a fina flor da intelectualidade do pós-guerra. Em 1967, tornou-se pública uma velha desconfiança: a CIA operava à sorrelfa o Congresso pela Liberdade da Cultura (CCF, na sigla em inglês) e, por seu intermédio, diversas fundações de fachada, promovendo conferências, simpósios, concertos, subsidiando publicações, festas, até viagens de primeira classe, com direito a caviar e champanhe.

Contei, por alto, sete livros dedicados ao assunto publicados nos últimos 18 anos, um dos quais, Quem Pagou a Conta – A CIA na Guerra Fria da Cultura, da jornalista britânica Frances Stonor Saunders, traduzido no Brasil pela Record em 2008. O pioneiro nesse ranking foi o francês Serge Guilbaut, autor, em 1983, de um estudo sobre “como Nova York roubou a ideia de arte moderna”. Por trás desse presuntivo furto, o tal Congresso.

Arma de propaganda dos ideais liberais e interesses econômicos americanos, o CCF foi fundado durante a primeira floração da Guerra Fria como uma resposta ao comunismo soviético e suas respectivas congregações internacionais, reativadas na Polônia em 1948. Sua cimeira inaugural atraiu a Berlim Ocidental, em junho de 1950, uma constelação de escritores, filósofos, críticos e historiadores, entre os quais Bertrand Russell, Karl Jaspers, Benedetto Croce, John Dewey, Arthur Koestler, Ignazio Silone, Raymond Aron, Tennessee Williams, Irving Kristol, Sidney Hook. Nem todos conservadores, a maioria esquerdistas desiludidos com o comunismo stalinista. 

Koestler redigiu-lhe o primeiro manifesto, com emendas do historiador Hugh Trevor-Roper e do filósofo A. J. Ayer. Nem de longe suspeitavam que a também recém-criada CIA sustentava a entidade, por intermédio do operativo Michael Josselson, que de Paris comandava todas as operações do CCF, rebatizada Association for Cultural Freedom depois do escândalo armado pela Ramparts – e a partir dali sustentada pela Fundação Ford.

Com representantes em 35 países, seu principal instrumento de persuasão eram as revistas culturais que nos cinco continentes deslanchou ou ajudou ao longo de duas décadas. A britânica Encounter, lançada em 1953, não foi a primeira (a alemã Der Monat já circulava por conta própria desde 1948), mas nenhuma congênere superou-a em qualidade e prestígio. Co-editada por Stephen Spender e inspirada na Partisan Review, reduto das esquerdas americanas independentes, era um modelo de urbanidade e vigor intelectual. Combativa, modernista e alinhada com a ala moderada do Partido Trabalhista inglês, abrigou em suas páginas Bertrand Russell, W.H. Auden, Mary McCarthy, C.P. Snow, Nancy Mitford, Hannah Arendt, Isaiah Berlin. Embora pró-EUA, fez críticas específicas à política externa americana e não deu mole para o macarthismo.

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Na França, o CCF bancou a Preuves; na Itália, a Tempo Presente; na Áustria, a Forum; no Japão, a Jiyu; na Índia, a Quest; na Nigéria, a Black Orpheus (lançada dois anos antes de a ópera negra de Tom & Vinicius chegar ao cinema). A América Latina de língua espanhola ganhou duas: Cuadernos (editada pelo exilado espanhol Julián Gorkin e desmoralizada por seu caricatural anticomunismo) e Mundo Nuevo (a muito boa sucessora de Cuadernos, aprumada em Paris pelo uruguaio Emir Rodriguez Monegal e primeiro posto avançado do boom da literatura latino-americana). 

Quem no Brasil tocava o Congresso era o poeta e romancista romeno Stefan Baciu, que para estas paragens fugiu em 1949 e aqui fez amizade com artistas e intelectuais de ponta. Era, acima de tudo, um aventureiro. Naturalizou-se brasileiro, trabalhou com Carlos Lacerda na Tribuna da Imprensa e criou a revista Cadernos Brasileiros, a Encounter tupiniquim, que durou de 1959 a 1971 e alinhou Aron, Jacques Maritain, Elizabeth Bishop e Marcílio Marques Moreira em seu time de colaboradores. 

Por sua índole pacata e porque só escolhia editores de sua inteira confiança, Michael Josselson parecia reinar no CCF como a rainha da Inglaterra. Outro fator importante: o espírito independente da maioria de seus escribas, por ele respeitados. Seu único veto a um texto (um cáustico ensaio de Dwight Macdonald sobre a cultura americana) caiu fora da Encounter mas acabou reaproveitado na bem menos lida Tempo Presente.

Encounter chegou a vender 30.000 exemplares. A denúncia de 1967 tirou-lhe um terço dos leitores, mas ela circulou por mais 24 anos. Sobreviveu a Josselson, ao Congresso e às demais revistas financiadas pela CIA, mas não à administração incompetente de seus últimos gestores. Maus administradores costumam ser mais daninhos do que a falta de liberdade de expressão.

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