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Cicatrizes concretas

As rachaduras na história dos moradores de um prédio em queda em São Paulo

Por Vitor Hugo Brandalise
Atualização:

Pode chamar de 72. Só 72. Melhor pegar logo intimidade, afinal, já é de casa. E é bem mais do que se poderia esperar de uma rachadura. A maior parte delas, quando dá as caras, não ganha nome nem número nem nada. Melhor seria que nem aparecessem, mas aqui no Condomínio Guarapiranga, conjunto habitacional da Prefeitura na Estrada do M’Boi Mirim, no fundão da zona sul de São Paulo, elas tomaram conta de tudo. Algumas são especiais, como a 72. Por isso convém seguir o conselho dos moradores do conjunto: enquanto estiver aqui dentro, é uma boa ideia ficar ligado no comportamento das fissuras. Um dia elas ainda põem o prédio todo abaixo e quanto mais você entender como se comportam e para onde crescem, mais fácil será decidir para que lado correr.

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Elas estão quebrando tudo, e a 72 é das mais nervosas: sai do meio do lustre da sala da dona Maria Pocaia e vai até o chão, arrebentando o que aparece pela frente. Atravessou a laje, a parede, o piso de cerâmica e só parou no pé da porta, depois de partir a soleira ao meio. A trinca 72 não guarda respeito nem pela igreja nem pela família - derrubou sem piedade a imagem da Nossa Senhora pendurada na sala e passou rachando pela foto dos três filhos da dona da casa, que tirou o porta-retratos dali. De janeiro para cá, a 72 atingiu três metros de comprimento e engordou até entortar o batente da porta, que passou a não fechar mais. Foi quando o vidro da janela quebrou sem explicações: culpa da 72, que resolveu procriar, ramificou-se em quatro e fez a parede parecer prestes a cair. E ninguém diz que não está mesmo - porque saber das intenções delas, com certeza, ninguém sabe ainda. A trinca vizinha à 72 tem dois metros e um bocão que abre até 5 centímetros. Ganhou o nome 73 e deixou à mostra o quarto da dona Maria. Pode abaixar e olhar através dela. Viu que dona Maria passou um fio da NET pela 73, um jeito que encontrou para poder assistir da cama à TV a cabo?

Mas isso era no tempo em que ela dormia na cama. Nos últimos meses já não dá mais pra isso não. Melhor ficar perto da porta, em um colchãozinho de solteiro, porque, se chover ou ventar demais e as trincas entenderem que finalmente chegou a hora de levar o prédio todo para o buraco, pode até ser que dê tempo de fugir. Dona Maria tem 59 anos, puxa de uma perna por causa de uma paralisia infantil e sabe que terá dificuldades se o pior acontecer. Mas não quer deixar o condomínio. Na verdade, como as 150 pessoas que vivem no Guarapiranga, ela está dividida: morre de medo de que o prédio desabe, mas não quer deixar a casa onde viveu nos últimos dez anos e para a qual foi levada, justamente, pela Prefeitura. Ainda mais pela oferta que fizeram.

Parece teimosia, ê povo difícil. Por que eles não se mudam logo, se tudo está caindo? O imbróglio é o seguinte: o conjunto habitacional foi interditado em março pela Defesa Civil e os moradores deste prédio de três andares - construído entre 2003 e 2005, durante as gestões de Marta Suplicy (então do PT) e José Serra (PSDB) - foram orientados a deixar o local. O Guarapiranga está “em perigo de ruína iminente” e permanecer aqui é uma “ameaça à integridade dos ocupantes, vizinhos e do público em geral”, como indica o auto de interdição. A prefeitura fez seu lance: bolsa-aluguel de R$ 400 e o cadastro no programa de habitação social, para que recebam um apartamento em outro conjunto. O problema é que não sabem dizer o prazo, e a negociação estancou. 

Nenhum dos 150 moradores topou porque eles já passaram pelo cadastro da Secretaria da Habitação (Sehab) uma vez. Foi na época da construção do prédio, quando foram “removidos” (como se diz de pessoas como essas, que têm de deixar suas casas) da favela Ferreira Viana, perto dali, para uma ampliação na Estrada do M’Boi. A promessa era parecida: agora teriam uma casa para morar, um novo conjunto habitacional, o Guarapiranga. Desde que as trincas pioraram, eles se perguntam: por que acreditar que desta vez a remoção vai dar certo? Para onde elas serão levadas? E quando? São perguntas sobre um tema tão importante quanto um teto para morar, e as respostas são vagas. O povo do condomínio ficou ressabiado. Preferiu continuar com suas rachaduras.

Na semana passada o pessoal de uma empresa de engenharia, contratada pela Prefeitura para fazer o laudo, levantou quantas são as trincas: cerca de 500, cada qual batizada com um número. Só na casa da dona Maria, que tem 45 metros quadrados, há 62 rachaduras. Ela brincou que desta vez, pelo menos, colaram umas placas de metal com um número do lado de cada trinca, “mais bonito do que escrever a giz”. Dona Maria soltou um sorriso tímido, mas logo fechou a cara. Ultimamente está difícil. Agora tem esses problemas nas paredes, como se não bastassem umas novas trincas que se abriram na sua vida um mês atrás. Perto da imagem de Nossa Senhora (agora abrigada numa cômoda longe das fissuras) ela colocou uma foto do filho mais velho, Robson, que era segurança em uma empresa de transportes. “Ele foi matado em uma briga de bar, moço. Faz um mês que enterrei o meu filho ali no (cemitério) São Luís.” Robson levou tantas facadas, ela conta, que a cara dele ficou “parecendo um balão”. “Fico aqui na sala, deitada nesse colchão, e não consigo pensar em outra coisa.” O primeiro marido da dona Maria também foi “matado”, em 1990, quando ainda moravam na Ferreira Viana. Morreu no meio da rua, “de tiro”. Ela diz que foi uma bênção ter saído da favela. “Parecia que seria para valer...”

O vizinho de porta da dona Maria é o Damião de Lima, que divide com ela uma rachadura - a 232, que surgiu arrebentando na parede do lado de fora do 5A (o apartamento de dona Maria) e chega até a janela do 1B, a casa do Damião. Ela não se contentou em ficar do lado de fora e abriu um buraco por onde quase se vê a sala do Damião. Quase, porque ele recheou a 232 com papelão e sacolas plásticas, para segurar o vento frio que bate da represa no fim do dia. Passa um pouco da friagem, mas melhor que nada. Duas são as coisas que incomodam o Damião: uma que é cadeirante e, por isso, mal consegue se mover na parte externa do prédio por causa das fissuras no piso. “Tô trancado em casa, rapaz! E dizem que o tal laudo sai em 30 dias. Então se tiver alguma obra aqui vai ser depois de julho. Tem que ver se isso aqui aguenta até lá.” Outro incômodo é que nunca teve moradia definitiva. “Ainda não consegui uma casa que possa dizer: agora sou garantido, agora posso ir daqui para o cemitério.”

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Essa coisa de casa sempre foi importante para o Damião. Ele viveu três anos em um hospital-orfanato no interior do Paraná, porque a mãe trabalhava na lavoura e não podia cuidar do filho deficiente. Um dia ele foi visitá-la e nunca esqueceu a cabana, com sacos de estopa no lugar da parede e capim seco como teto. Diz agora que essas trincas todas - as maiores são a 94 e a 96, que surgem no topo da porta do corredor e sobem misteriosas teto adentro - também já fazem parte de sua vida. “Nas próximas moradias, todos vão pensar: será que vai acontecer o que aconteceu na outra?” É por isso que ele não quer sair do Guarapiranga por qualquer coisa. Ô autoridade, como diz o Damião, acha que é fácil negociar com as rachaduras da vida da gente?

O prédio parece que se mexe. Se você passear pelas calçadas, perceberá que elas estão tortas, como se fossem rampas que descem da lateral do edifício (as 50 crianças que vivem aqui adoram brincar nelas), e que há desníveis de 20 centímetros. A impressão é que o lugar está afundando. Junte-se a isso o fato de que, olhando de longe, por causa de uma área mais elevada do prédio, ele lembra um navio, e você terá uma nova definição de unidade de moradia social em São Paulo: o Titanic Habitacional, que é como o Guarapiranga está sendo chamado. Também dizem que houve um terremoto por aqui. Olhe bem: parece mesmo.

Pelo que disse um engenheiro, o mais provável é que o problema seja outro: não é o prédio que afunda, mas o solo onde ele foi (mal) construído. O rebaixamento da terra faz carga nas vigas, que força os pilares, que pesam na alvenaria das paredes, que cedem... Está aí a origem das rachaduras. Tudo indica que o prédio foi feito às pressas. A tremedeira dos ônibus do Terminal Guarapiranga da SPTrans, vizinho de muro daqui, e dos caminhões do Atacadão, do outro lado, também tem participação. Mas ainda não está comprovado. Essas são só as primeiras impressões dos engenheiros. A empreiteira OAS, que construiu o prédio, ainda não foi notificada, pois não se sabe quais são suas responsabilidades. Esperemos o laudo.

É de noite, quando tudo fica silencioso e Damião permanece bem quieto na cama, que ele nota o alvoroço nas entranhas do prédio. Ouve uns estalos, um crac-crac, como se alguém estivesse forçando um pedaço de madeira até quase ceder. E escuta um ruído nas paredes. Parece areia caindo ali dentro. Já pensou isso em casa?

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A areia que invade o sono do Damião só pode vir do apartamento do Alexandre da Silva, o 11B, no andar de cima. Aqui no apê do Alexandre, de 35 anos, tem umas rachaduras no piso que parecem conhecidas: será que não são a 94 e a 96, que vieram ali do Damião e emergiram no piso de cima? Daqui a pouco o Alexandre e o Damião poderão se falar sem sair de casa. E poderão participar a dona Cícera, mãe do Alexandre, e as três irmãs e o cunhado, todos moradores do 11B, um apartamento de dois quartos, sala, banheiro e cozinha. As famílias aqui são numerosas, os preços na região não estão fáceis (o aluguel de um apartamento como esse não custa menos de R$ 1.000) e essa é outra razão pela qual esse povo não aceita o auxílio oferecido. 

É Alexandre o mentor do rebuliço que levou o Guarapiranga ao noticiário nas últimas semanas. Ele estendeu duas faixas de 20 metros de comprimento na fachada, em que expõe a situação: “Em uma atitude de desespero os 150 moradores deste prédio pedem ajuda. Ele está caindo e a prefeitura não faz nada. Não queremos morrer soterrados!” Parte da casa do Alexandre literalmente caiu e foi por isso que ele resolveu protestar. Chovia quando um pedaço da parede do quarto desabou. Abriu-se um rombo por onde passa o braço do Alexandre - é a maior rachadura do Guarapiranga. Ela só não está numerada porque ele não deixou o pessoal da sondagem entrar em casa. “Já fizeram isso uma vez e não mudou nada. Essa sondagem não passa de lorota.”

Ele encerrou a faixa com um apelo: “Socorro! Socorro! Socorro!” É uma ênfase parecida com a que o Alexandre dá quando conta o que aconteceu ao pai - certamente o rombo maior que já se abriu em sua vida. Foi em 1994. Estava só o Alexandre em casa (tinha 14 anos) quando o pai, que bebia, começou a sofrer um ataque epiléptico. Ele não despertava mais e Alexandre não tinha carro, moto, nem dinheiro para táxi. “Socorro, socorro, socorro!”, correu pela favela o adolescente, até encontrar um conhecido que o levou ao hospital. O pai foi colocado no banco de trás do carro, com a cabeça em seu colo. Morreu ali. “Ele deu o último suspiro em mim. Lembro disso sempre, em meus sonhos e meus pesadelos.” Dali em diante Alexandre tornou-se o homem da casa. Largou a escola (estava na sexta série) e começou a engraxar sapatos. “Nunca mais estudei. Minha vida toda foi para dar estabilidade à minha família. Graças a Deus minha irmã mais nova está pensando em fazer uma faculdade. É o sonho da minha vida”, ele diz. O outro sonho era ter uma casa, e é por isso que ele está tão revoltado. 

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Alexandre conta sua história sentado no sofá da sala, que é ladeado por um outro rombo. O buraco se esvai em uma rachadura e desaparece parede afora. Vai ressurgir no apartamento vizinho na forma da trinca 309, um bicho bem feio que parece querer se abrir em um buraco parecido com o que há no quarto do Alexandre. A trinca se transformou em diversão para a Júlia, de 3 anos, filha da dona da casa, a Daniela dos Santos. Por enquanto ela pode brincar ali (serve de estrada para seus carrinhos, feitos de controle remoto da TV), pois a Júlia é bem pequena e leve e porque a parede “ainda aguenta um bom tanto”. Mas a Daniela sabe que é naquela direção, para os fundos, que o prédio parece ceder. “A água do banho vazava e ia parar na sala, na frente da casa. Agora desce pro ralo, nos fundos”, diz. O pessoal da sondagem disse que é por aí mesmo.

Apesar de entenderem que há algo de muito errado, os moradores resistem na negociação por causa da forma como a Prefeitura conduz a questão. Nessa semana, funcionários públicos estiveram no Guarapiranga e disseram duas coisas aos moradores. Primeiro eles ouviram de integrantes da subprefeitura do M’Boi Mirim (e gravaram no celular, claro) que o conjunto habitacional onde vivem desde 2005 seria na verdade um alojamento provisório. Disseram que eles não deveriam passar mais de um ano ali. Porque essa coisa de casa é importante para ele, o Damião fez as contas: “Pagamos quase R$ 8 mil em dez anos acreditando que estávamos acertando nossa casa e, na verdade, era uma coisa provisória? Isso é estelionato!” E, se era provisório, cadê o definitivo?

Depois, na sexta, a prefeitura disse que isso não é verdade. E nem mesmo era verdade o que disse um outro funcionário, da Sehab, que apareceu no condomínio dizendo que eles teriam dez dias para “deixar o local”. Alguns começaram a fazer as malas, mas pararam depois que o síndico informal disso tudo, o Alexandre, foi até a subprefeitura. A conversa, para repetir a palavra que ele mais vem usando, novamente não passava de “lorota”. Só que as rachaduras - as que estão nas paredes e as que marcaram as vidas dessas pessoas - são muito reais. Essas que já surgiram e outras, que virão.

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