Cidade interrompida

O deslizamento no Túnel Rebouças evidencia o nó estrutural do Rio, diz economista Carlos Lessa

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Por Flavia Tavares
Atualização:

Sete mil toneladas de terra vieram abaixo em sete deslizamentos consecutivos. O Túnel Rebouças, por onde passam cerca de 180 mil carros por dia, ficou interditado e a cidade do Rio de Janeiro travou. Especulou-se que uma tubulação clandestina de água teria se rompido e causado o incidente. As queimadas da vegetação que protege o solo também foram apontadas como razão do episódio. Enquanto se apura o motivo prático dos deslizamentos, o que fica evidente é uma deficiência estrutural da cidade, que, por causa de um túnel fechado, teve uma semana de caos. "O Rio tem várias dificuldades de infra-estrutura e está fadado a inundações. Mas um dos principais problemas é o transporte coletivo. Não poderíamos ter priorizado o transporte rodoviário", explica o economista Carlos Lessa, mudando o foco da problemática configuração urbana do Rio. Lessa, um estudioso da história da cidade, é autor de O Rio de Todos os Brasis, livro da coleção Metrópoles, da editora Record. Nele, o ex-presidente do BNDES - possível candidato a prefeito do Rio pelo PSB, nas eleições de 2008 - atravessa o desenvolvimento da Cidade Maravilhosa desde os tempos coloniais até o processo de favelização. Em entrevista ao Aliás, Lessa, professor emérito da UFRJ, destaca uma das características que tornam o Rio um cenário único no mundo: a linearidade. "É uma metrópole organizada em linhas. Isto dificulta acessos e concentra pessoas de diferentes camadas sociais em um único bairro". Atualmente, o economista está escrevendo dois livros: um sobre Minas Gerais e o outro, uma vez mais, sobre o Rio de Janeiro. FATALIDADE "O episódio de deslizamento de terra no Túnel Rebouças foi uma fatalidade. Como quando ocorreu a tragédia do buraco do metrô em São Paulo. Não há um culpado, há uma sucessão de equívocos. As grandes cidades estão sujeitas a acontecimentos dramáticos. Não se pode culpar o homem público brasileiro, mesmo porque ele não tem recursos financeiros para evitar esses acontecimentos. PÃO E ÁGUA "A legislação brasileira desguarneceu os municípios e os Estados. A Constituição de 1988 estabeleceu que havia uma participação proporcional dos Estados e municípios nas receitas de impostos. Mas o governo federal, desde a gestão Collor, criou a categoria ?contribuição? e conseguiu no STF a determinação de que contribuição não é imposto. Por isso, por exemplo, a CPMF não dá um tostão para governadores e prefeitos. As administrações municipais e estaduais vivem a pão e água. LINEARIDADE "O Rio de Janeiro tem uma característica que o torna muito diferente. A maioria das grandes cidades é ortogonal. Isto quer dizer que há um caminho mais curto para ir de um ponto a outro, mas, se esse caminho for interrompido, há trajetos alternativos. O Rio é linear. Os bairros do Rio estão entre a montanha e o mar, entre uma cadeia de montanha e outra ou são nascidos a partir de estações ferroviárias. Então, a cidade é toda organizada em linhas: você chega a um bairro C, partindo de um bairro A, somente passando pelo bairro intermediário B. O Túnel Rebouças, que é a principal ligação entre a zona norte e a zona sul, foi interrompido e o caos se instalou. VARIEDADE NA VIZINHANÇA "Uma conseqüência dessa linearidade é a concentração, em um só bairro, de todos os estratos sociais. É muito ruim morar longe do local de trabalho. Quem gastaria três horas de deslocamento para trabalhar prefere morar numa encosta a ter de passar por isso. Quanto mais rico for o asfalto, maior é a atração de pessoas para morar nos arredores. Um exemplo claro é a Rocinha, maior favela do Rio, que fica ao lado de São Conrado, metro quadrado mais caro da cidade. SOLUÇÃO DE SUPERFÍCIE "Há um senso comum de que os problemas estruturais do Rio decorrem da favelização da cidade. Isto não é verdade. São os problemas de configuração urbana e de infra-estrutura que dão origem às favelas. Se, historicamente, tivéssemos investido em metrô de superfície, morar no subúrbio do Rio seria muito confortável para o trabalhador. Mais ou menos 3 milhões de pessoas gastariam apenas 40 minutos para chegar ao local de trabalho e todos prefeririam morar em uma casa no subúrbio a morar no morro. Ocorre que o quilômetro construído no Rio é caríssimo, porque o subsolo é constituído de granito ou de lodo. Os dois tipos de subsolo tornam as obras de metrô subterrâneo caríssimas. O metrô de superfície é mais barato. E a cidade tem um canal de tráfego para esse tipo de transporte praticamente pronto, que atravessa todos os subúrbios. O SOL DO LADO DE FORA "Como a cidade tem mais de 6 milhões de habitantes e não dá para se começar do zero, uma das soluções que me entusiasmam é transformar as favelas em bairros populares. O projeto Favela-Bairro se inspira nessa visão e fez uma urbanização nas favelas magnífica. Quase todas têm hoje água, esgoto, escola e postos de saúde. O lado ruim é que essas melhorias atraem especulação imobiliária e o povo dos municípios periféricos está se mudando para as favelas. Como numa réplica do que acontece no asfalto, as favelas estão se verticalizando. Isso vai causar um problema de saúde pública sério, porque, com prédios nessas vielas, o sol, essencial para uma vida saudável, não entra nas comunidades. DE COSTAS PARA A BAÍA "Os principais nós estruturais do Rio são o transporte público e a recuperação da Baía da Guanabara. A cidade nasceu ali, mas se virou de costas para a baía. Não a ocupa de maneira inteligente, não incentiva esportes náuticos, não cria percursos turísticos para as ilhas. Esse programa de recuperação da Baía da Guanabara tem 25 anos e não se completa, porque o sistema de esgotos do Rio é muito antigo. As estações de tratamento foram feitas, mas a coleta do esgoto é precária e ainda desemboca ali. Além disso, o velho porto praticamente não tem utilidade. O Rio tem que ocupar esse porto e fazer como outras grandes metrópoles: torná-lo um lugar bonito. Buenos Aires, Nova York, Londres e Barcelona fizeram isso. Nós não fazemos, porque esta é uma responsabilidade do governo federal, que não libera verbas. Se os terrenos ao redor do porto fossem privatizados, cerca de 200 mil famílias poderiam morar ali. A cidade é cheia de ótimos espaços não utilizados. CIDADE ESPARRAMADA "O Rio de Janeiro foi capital do País. Quando o governo federal transferiu a cúpula dirigente para Brasília e São Paulo atraiu a cúpula financeira, a cidade sobrou com um monte de prédios vazios, que o governo federal não quer vender. Por isso, a cidade se expandiu para os extremos, ocupando a Barra e o Recreio dos Bandeirantes. Isso esparramou o Rio em uma extensão imensa, enquanto há prédios abandonados no centro. Além disso, o Rio não está relevante politicamente e não é o pólo econômico do País. Os investimentos federais são menores. O FADO DAS INUNDAÇÕES "A cidade está fadada a inundações. Muitas linhas d''''água do Rio estão abaixo da linha do mar. Quando há a combinação maré alta e chuva muito forte, inunda tudo. Outras cidades têm problemas semelhantes, como Recife. Só se impede isso construindo imensos pôlderes, espécie de diques protetores. EVOLUÇÃO HISTÓRICA "Os problemas da cidade eram muito piores no passado. O Rio foi capital do Império e era infestado de enfermidades: cólera, febre amarela, varíola e etc. Na época de dom João VI, a cidade tinha 60 mil habitantes. No fim do século 19, tinha 1 milhão. Nessa passagem, se acumularam problemas dantescos. Foi o presidente Rodrigues Alves quem modernizou o Rio de Janeiro. A história de modernização do Rio é feita de grandes investimentos federais, no início do século 20. Nas décadas de 60, 70 e 80, houve uma industrialização forte e foram feitas obras de infra-estrutura, como a ponte Rio-Niterói e o aeroporto do Galeão. Onde se errou historicamente foi no transporte coletivo, com a opção pelo rodoviário. PENSAR O FUTURO "A idéia do planejamento não é a idéia de uma economia de mercado. Planejar é construir o futuro que você deseja para você. Já a economia de mercado pensa no futuro que será bom para o mercado. Todos os projetos de infra-estrutura de grande porte são públicos. O governador Carlos Lacerda conseguiu fazer o Túnel Rebouças, o Negrão de Lima, o Túnel Santa Bárbara, os governos de São Paulo conseguiram fazer avenidas, tudo porque eles tinham dinheiro para atuar. Hoje, não têm. O governo federal, que tem recursos, usa para pagar juros de dívida pública. Ninguém pensa no longo prazo. O Brasil não discute o seu futuro, seu amanhã. QUARTA, 24 DE OUTUBRO Terra à vista A forte chuva, que começou na noite de terça-feira e se prolongou pela quarta, soterrou um dos acessos do Túnel Rebouças, principal ligação entre as zonas sul e norte do Rio, e parou a cidade. O trânsito ficou três vezes mais lento. Não há prazo para liberação do túnel.

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