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Cidadelas ocupadas

As eleições municipais movimentam o xadrez eleitoral de 2010 - mas o jogo é bem maior

Por Ivan Marsiglia
Atualização:

O fechamento da última urna às 17h deste domingo deu início não apenas à disputa pela administração dos 5.565 municípios do País, mas abriu também a corrida pelo posto mais cobiçado da política brasileira: o de presidente da República em 2010. Embora a batalha pela sucessão passe pela conquista dessas cobiçadas cidadelas, para Argelina Cheibub Figueiredo, PhD em Ciência Política pela Universidade de Chicago, isso não é fundamental. A recíproca é verdadeira, e nem a aprovação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que atingiu inéditos 80%, é garantia de bom desempenho nos municípios. A principal arma de um candidato a prefeito ou a presidente, ensina a professora fluminense, é credibilidade: "Não se vende política como sabonete, o eleitorado sabe votar bem". Pesquisadora do Iuperj, Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, e do Cebrap, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em São Paulo, Argelina trafega na ponte aérea entre as duas instituições e é co-autora, ao lado do colega Fernando Papaterra Limongi, de uma obra já clássica no entendimento das instituições políticas brasileiras, o livro Política Orçamentária no Presidencialismo de Coalizão (2008, editora FGV). Na entrevista a seguir, ela diz que o Bolsa-Família é visto pela população como "obra do prefeito", explica por que a aliança costurada por José Serra com o DEM pode se tornar uma arapuca e defende o sistema eleitoral em vigor no País: "Nossas instituições ainda serão modelo para o mundo". Neste domingo, 5.565 municípios brasileiros estavam elegendo prefeitos e vereadores. Ao mesmo tempo, é grande a movimentação de presidenciáveis em torno de seus candidatos. Até que ponto a política local está a serviço da política nacional? É lógico que em um Estado federativo como o Brasil os três níveis estão interligados. Mas eles também têm dinâmicas próprias. Acho que a eleição municipal é importante para a sucessão de 2010, mas não fundamental. Vou citar uma frase do meu marido, o (cientista político) Marcus Figueiredo: "Se as eleições municipais fossem decisivas, o PMDB elegeria todos os presidentes". Nove dias atrás, 63% dos eleitores paulistanos ainda não tinham escolhido candidato a vereador. Há um esvaziamento da vereança? A gente tende a fazer avaliações do sistema político e partidário brasileiro com base em comparações muito genéricas com outros países. O Brasil tem 20 anos de democracia e as eleições municipais não são as mesmas da década de 1990. Um grande número de políticas sociais passou a ser definido nacionalmente. É o caso dos recursos do SUS (Sistema Único de Saúde). Por conta disso, o papel dos municípios deixou de ser o de "pedir verbas" e passou a ser o de administrá-las. Aos poucos a população vai entendendo e avaliando a gestão do prefeito e a atuação dos vereadores - que é servir como canal de informação sobre que parte da cidade está precisando do quê. As prefeituras são cidadelas a serem ocupadas na guerra pelo poder federal? O partido do governo federal é beneficiado em nível municipal, mas não porque o presidente é popular ou deixa de ser. Fernando Henrique nunca teve a popularidade de Lula, mas o PSDB também aumentou durante seu governo. Tem a ver com a máquina política. Por exemplo, a eleição do Rio: acredito que Eduardo Paes está subindo porque a experiência do governador Sérgio Cabral com Lula, de sintonia entre as esferas estadual e federal, foi percebida positivamente. Paes fez sua campanha dizendo isso: "É município, Estado e governo federal". No entanto, isso só funciona se for uma coisa crível. Não se vende política como sabonete: o eleitorado não é burro, sabe votar muito bem. Por que no Rio isso é crível? Não sei de outro lugar no País em que tenha havido tantos atritos nos últimos anos entre os entes federativos: morre peixe na Lagoa e fica a discussão se a culpa é do prefeito, se o Estado é que não cuida do canal etc. A população vê isso, sofre a conseqüência. E o fato é que houve uma convergência e o Rio deu uma melhorada. Basta comparar com o que tinha ontem: Sérgio Cabral é bem melhor que (o ex-governador Anthony) Garotinho. Mas como se explica o voto em Eduardo Paes, tendo sido ele um algoz do governo Lula nas CPIs do "mensalão"? A aliança no Rio é uma prévia para uma possível chapa com Dilma Rousseff (PT) e Sérgio Cabral (PMDB)? Para a população, isso não conta muito. O "mensalão" foi um tiro que saiu pela culatra porque se anunciou "a maior corrupção da história do País", que, na hora H, não ficou demonstrada. O fato é que a população vota pensando em seu bem-estar. Para 2010, claro que a máquina partidária do PMDB será importante. Mas basta ver o desempenho do candidato do PT, Alessandro Molon, para perceber que a popularidade presidencial não dá votos independentemente da realidade local. Em São Paulo o que se vê é um cenário polarizado entre a candidata do presidente Lula, Marta Suplicy (PT), e do governador José Serra, Gilberto Kassab (DEM). Essa eleição tem mais importância na disputa interna do PSDB em São Paulo. Outro dia ouvi um motorista de táxi, que vota no Kassab, dizer: "Agora o Alckmin vai voltar a ser prefeito de Pindamonhangaba. Ou vereador." (Risos.) Se vier, a vitória de Kassab ajuda Serra a manter a coligação com o DEM. Mas isso também é uma arapuca. A disputa pela sucessão presidencial será entre Serra e Aécio. E talvez Serra leve a pior nesse aspecto, pois é preciso pensar se a aliança PSDB/ PFL já não deu o que tinha que dar, cumpriu seu papel histórico no Brasil. Qual foi a estratégia de Aécio ao se aproximar do prefeito petista Fernando Pimentel para eleger um candidato de outro partido, o PSB? Aécio está jogando para sair candidato, seja pelo PSDB, seja por outro partido. Terá mais maleabilidade. Não tenho a mínima dúvida de que Serra se situa mais à esquerda do que o governador mineiro, mas já sai amarrado na coligação com o DEM. A estratégia de Aécio é outra, andar para a frente. Não à toa, propõe o "pós-lulismo" em vez do "antilulismo" - rótulo do qual Serra dificilmente conseguirá fugir. E Ciro Gomes? São suas pretensões eleitorais para 2010 que explicam tanto empenho pela eleição de sua ex-mulher Patrícia Saboya à prefeitura de Fortaleza? Acho que se empenharia de todo jeito. Mas percebo que deu uma baixada de bola sobre 2010. O novo Ciro diz, como Aécio, que não tem pressa. DEM e PMDB saem maiores ou menores dessa eleição? O PMDB deve ficar mais ou menos como está, não creio que cresça muito. Sobre o DEM, o caso Kassab é uma exceção. A candidata do Cesar Maia no Rio, por exemplo, encolheu na campanha. Mas em Salvador ACM Neto tem chances de vitória. ACM Neto tem dito duas coisas: que vai ampliar o Bolsa-Família e que o presidente Lula não discrimina prefeito da oposição. Lembre-se que seu avô, Antônio Carlos Magalhães, nunca teve maioria na cidade. Controlava o interior, mas em Salvador não passava de um terço do eleitorado. Projeções feitas pelos institutos de pesquisa apontam que haverá crescimento do PT no País, das atuais cerca de 400 cidades para algo em torno de 600 a 700 prefeituras. É a popularidade de Lula? Não só do Lula. Partidos sempre crescem a partir da sua relação com o Estado, e isso não é distorção nem característica do Brasil. Eles sempre se beneficiam do fato de estar no poder, senão não seriam partidos. Um exemplo é o PDT, que cresceu depois que Carlos Luppi entrou no Ministério do Trabalho. O ministro tem feito coisas pelos sindicatos que eu, pessoalmente, poderia ser contra. Mas o fato é que trabalha para a clientela dele. As pessoas querem que os partidos políticos sejam orientados por políticas públicas e ideologias, mas na hora que fazem isso, acham que está errado. Chamam pejorativamente de "clientelismo". Eu chamo a "clientela" de eleitorado. Boa parte dos municípios brasileiros têm orçamento limitado. A municipalização de verbas federais não atrela as prefeituras ao Palácio do Planalto? Primeiro é preciso ver como a população entende isso. Muita gente diz que a popularidade de Lula se deve ao Bolsa-Família. No entanto, uma pesquisa feita pelo instituto do (cientista político Antonio) Lavareda, no Recife, mostrou que a maioria dos entrevistados achavam que o Bolsa-Família era um programa da prefeitura. Porque o cadastramento é feito por órgãos municipais. Lula, para eles, faz um bom governo, mas sua aprovação não está diretamente ligada ao programa. É preciso saber como a população responsabiliza os diferentes governantes pelos serviços que recebe antes de tirar esse tipo de conclusão. Dificilmente se vê em nível municipal o cenário de embates entre Executivo e Legislativo que ocorre em Brasília. CPIs são freqüentemente abafadas, por exemplo. A câmara dos vereadores atua como mera linha auxiliar do prefeito? Não acho que esse seja necessariamente um problema institucional. Em municípios tão pequenos, com uma câmara de nove vereadores e um prefeito, é lógico que todos se conheçam, jantem juntos e que não haja divisão de poderes como se espera nas grandes cidades ou no âmbito federal. Mas, em um sistema de divisão de poderes, o Executivo e o Legislativo não precisam estar necessariamente em conflito. O primeiro ponto de conexão entre os dois é o partido. E isso tem a ver com o tipo de organização do presidencialismo no Brasil, que é diferente dos EUA. Diferente como? Aqui, a conexão entre Executivo e Legislativo é mais forte, em todos os níveis: municipal, estadual e federal. Como no Brasil temos o multipartidarismo e raramente se consegue maioria com um partido, forma-se um governo de coalizão em que você traz para o ministério pessoas ligadas aos partidos para funcionar na câmara. É o que Fernando (Limongi, cientista político) e eu notamos em nossa pesquisa: no Brasil o presidente tem poderes legislativos muito fortes, uma interferência grande dentro do Legislativo - legítima, dada pelos constituintes. Nos EUA, você tem uma separação total: o presidente não pode nem enviar projeto de lei. No Brasil, não só pode como, em algumas áreas, só ele pode. Como conseqüência, o Executivo brasileiro tem poder de determinar a agenda. No fim das contas, o modelo brasileiro é muito parecido com o parlamentarismo, que é exatamente isso: a fusão entre Executivo e Legislativo. Nos últimos anos, o País assistiu a uma série de escândalos com arrecadação de fundos em prefeituras de vários partidos. A batalha pelas eleições municipais passa também pela composição do caixa para a campanha de 2010? Acho que tem um pouco disso sim. Mas eu diria que a questão predominante é de apoio político. As campanhas são feitas de forma vinculada: o vereador trabalha para um deputado estadual, que se empenha pela eleição de um ou dois federais, etc. Existe uma estrutura de votos, o que não quer dizer que ela vá ser determinante na eleição nacional. Esse modelo articulando União, Estados e municípios é adequado? Que eu saiba, o Brasil é o único lugar do mundo onde o município é visto como ente federativo. Nos EUA e no Canadá, o equivalente seriam os counties - e alguns sequer têm representantes eleitos, mas administradores contratados. O município no Brasil tem autonomia legislativa, administrativa e política. É um admirável exemplo de democracia direta. Ainda vou viver para ver as instituições brasileiras passarem a ser consideradas modelo. A senhora acha que o sistema eleitoral do País não pede mudanças? Perdi a vergonha de defender o sistema eleitoral brasileiro. Ele é bom. Permite que você escolha um partido e um candidato: se quiser votar só no partido, pode; se prefere escolher diretamente o candidato, também. Tem essa accountability que outros não admitem. O sistema de voto distrital puro é o mais injusto que existe, na minha opinião: elege maiorias para a câmara que não representam a maioria dos eleitores. Não custa lembrar: a chamada identificação partidária, a simpatia por partidos, é alta no Brasil. Segundo pesquisa do Ibope, 60% dos brasileiros têm simpatia por algum partido político, um dado extraordinário. Dá para aperfeiçoar esse sistema que a senhora considera bom? A propaganda gratuita é um mecanismo excelente que só existe no Brasil: permite o acesso de vários partidos à televisão. Só acho ruim quando na propaganda dos vereadores não aparece o nome dos partidos. Fala-se de fidelidade partidária, mas isso também não é coisa que se imponha por lei. Aperfeiçoar é possível: recentemente, com uma resolução interna a Câmara dos Deputados decidiu que na composição da mesa passam a valer os votos que o deputado teve na última eleição, do partido pelo qual foi eleito, não daquele para o qual migrou. Isso diminuiu o troca-troca. São medidas bem-vindas, mas você não pode descaracterizar o sistema nem engessá-lo a ponto de as pessoas não poderem trocar de partido. Nós estamos em uma democracia, afinal.

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