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Clássico do russo Ivan Turgueniev retrata família desajustada

'Diário de um Homem Supérfluo' se coloca em uma linhagem que investiga um tipo literário e social próprio da Rússia

Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualização:

No bicentenário de nascimento do russo Ivan Turgueniev (1818-1883), a Editora 34 lança o Diário de um Homem Supérfluo (1850), obra que, segundo o tradutor Samuel Junqueira, no posfácio, O Trágico Destino dos Melhores Homens na Rússia, estabeleceu a síntese do homem supérfluo como tipo literário, histórico e social: “Da publicação de A Desgraça de Ter Espírito (1824), de Aleksandr Griboiedov (1795-1829), até Oblomov (1859), de Ivan Gontcharov (1812-1891), a literatura russa giraria em torno desse tipo, influenciando todos os grandes escritores do período”. 

O escritor russo Ivan Tugueniev, autor de 'Diário de um Homem Supérfluo' 

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Com a vaga antimonarquista aberta pela Revolução Francesa, em fins do século 18, um espectro passou a rondar a Rússia czarista, o espectro da guilhotina. A despeito de as tropas do czar Alexandre I (1777-1825) terem rechaçado, de forma heroica, a invasão maciça do país pelos exércitos comandados por Napoleão Bonaparte (1769-1821), em 1812 – contraofensiva imortalizada pelo romance Guerra e Paz (1865-1869), de Liev Tolstoi (1828-1910) –, o oficialato russo pôde entrar em contato, Europa adentro, com a opulência ocidental que contrastava, aberrantemente, com o atraso econômico-político da Rússia. 

Em dezembro de 1825, oficiais do exército se opuseram à coroação de Nicolau I (1796-1855) e deram vazão à primeira contestação do regime czarista, que só viria a ser derrubado em fevereiro de 1917. De origem nobre, os oficiais da Revolta Dezembrista foram amplamente reprimidos – fuzilamentos e o exílio siberiano foram as punições do czar contra eles para desencorajar novas sublevações. Assim, é do seio de filões nobres, revoltosos e emparedados que surge a figura do homem supérfluo. 

Segundo Samuel Junqueira, “os homens supérfluos são caracterizados como jovens de origem nobre, dotados de grande capacidade intelectual e dos mais elevados princípios morais, mas também incapacitados para a ação, para a luta em nome de seus ideais, tanto devido ao sistema repressor sob o qual estão submetidos quanto à própria educação que receberam”.

O homem supérfluo de Ivan Turgueniev escreve seu diário à beira da morte radicalmente precoce, já que a personagem mal havia cruzado a fronteira dos 30 anos. Com céleres pinceladas – tão fugazes quanto os parcos dias que lhe restam –, o narrador-personagem esboça o retrato de sua família abastada e desconjuntada: o pai perdulário era viciado em jogatina; a mãe, a despeito de ser justa e, por vezes, carinhosa, era bastante fria; filho único, o homem supérfluo, qual um bibelô, fora educado em seu casarão por tutores. 

Para além do privilégio de classe – a bem dizer, de casta –, o homem supérfluo desponta como uma figura efetivamente humana na ocasião de seu profundo pesar por causa da morte do pai pródigo: 

“Completamente transtornado pela tragédia, fiquei sentado à mesa em que jazia o cadáver, com uma vela na mão e ouvindo a densa melodia do sacristão, de quando em quando entrecortada pela voz frágil do padre; lágrimas escorriam-me pelo rosto, lábios, colarinho e peitilho; contemplava com insistência e atenção o rosto imóvel do meu pai, como se esperasse dele alguma coisa; enquanto isso, mamãe prostrava-se, erguia-se lentamente e, persignando-se, apertava com força os dedos na testa, nos ombros e no peito. Não conseguia concentrar-me em nada; estava inteiramente apático, mas sentia que algo terrível acontecia comigo... Então a morte encarou-me e tomou nota de mim...”

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Se o sumo sofrimento faz com que nos apiedemos do homem supérfluo, suas rememorações líricas e lúdicas revolvem o baú de brinquedos da infância e encarnam um belo aforismo do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900): “Maturidade do adulto: recuperar a seriedade da criança ao brincar”. É assim que, moribundo, o homem supérfluo se lembra do “doce aroma do trigo sarraceno ceifado nos campos de minha terra; gostaria de mais uma vez ouvir ao longe o toque discreto do sino rachado da igreja de nossa paróquia; mais uma vez ficar deitado à sombra fresca sob um pé de carvalho na encosta de uma ribanceira familiar; mais uma vez seguir com os olhos o movimento ágil do vento e do fluxo escuro que flui pela relva dourada do nosso prado”.

Mas eis que, em meio ao elogio panteísta da natureza, o homem supérfluo desvela o nobre usurpador como a outra face do poeta que não precisa ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Assim, no jardim do Éden de sua infância que já se encaminha para a adolescência libidinal, o homem supérfluo avistou “a criada Klávdia, que, apesar do nariz arrebitado e do hábito de rir sob o lenço, suscitou-me uma tão meiga paixão que, em sua presença, mal podia respirar; certo dia, no Domingo de Ramos, quando chegou sua vez de beijar reverentemente minha mão de senhorzinho, por pouco não me lancei a beijar-lhe os sapatos gastos de couro de bode”. *Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela FFLCH-USP, com pós-doutorado em literatura russa pela Northwestern University (EUA); autor de 'Dostoievski e a Dialética: Fetichismo da Forma, Utopia como Conteúdo' (editora Hedra)

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