‘Código Civil brasileiro não entende a criança como detentora de direitos’, avalia defensora pública

Após quatro anos de pesquisa, Elisa Costa Cruz avalia em livro sobre guarda parental que legislação sobre guarda objetifica a criança e carrega visão machista

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Foto do author Leon Ferrari
Por Leon Ferrari
Atualização:

Com mais de dez anos de atuação como defensora pública do Estado do Rio de Janeiro, não foram poucas as vezes em que Elisa Costa Cruz se deparou com grandes conflitos relativos a quem deveria ficar com os filhos em separações. A mestre e doutora em Direito Civil questionava-se: “Por que o direito deixa isso acontecer?”. A resposta veio em junho deste ano com o livro Guarda Parental: Releitura a Partir do Cuidado: “O Código Civil brasileiro não entende a criança como detentora de direitos”, avalia a defensora.

A defensora públicaElisa Costa Cruz Foto: Priscila Jammal

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O livro é fruto do doutorado cursado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) entre 2016 e 2020, e considera como criança aqueles com 18 anos incompletos, conforme a Convenção sobre Direitos da Criança de 1990. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) define como criança a pessoa entre zero e 12 anos de idade, e como adolescente a pessoa entre doze e dezoito. 

Ao fazer uma revisão histórica da legislação relativa à criança no Brasil, Elisa percebeu que o Código Civil é “adultocêntrico” e tutelar, não é, nesse sentido, emancipador. “A criança precisa ser transferida da margem da discussão sobre guarda parental ao centro. Elas ainda são muito marginalizadas, precisam ser colocadas no ponto central”, declara em entrevista ao Estadão.

Para a defensora, uma análise semântica do Código Civil já permite perceber o adultocentrismo. “Guarda é uma palavra que vem do direito de propriedade. Quando você tem alguma coisa, pode guardar. Quando tem a posse, você guarda. O que é guardar crianças?”, questiona. No livro, Elisa também aponta que o uso de palavras como “menor” e “filho” pela legislação civil, invisibiliza a criança enquanto detentora de direitos.

Além da objetificação da criança, Elisa também avalia que a legislação civil reforça o machismo institucional. “Eu me dei conta, durante os quatro anos de pesquisa, que a guarda foi pensada como punição. O fenômeno da guarda e do perder o direito ao filho sempre foi algo utilizado no direito para impedir separações e divórcios”, explica. Para ela, o viés punitivo sempre esteve dirigido principalmente às mulheres, a fim de que se mantivessem em seus casamentos. 

Conforme a defensora, o viés punitivo sempre esteve dirigido principalmente às mulheres, a fim de que se mantivessem em seus casamentos. Isso porque, até 1962, o Direito Civil buscava um culpado pela separação, o “inocente” ficaria com a criança. Contudo, caso ambos fossem responsabilizados pelo divórcio, o homem teria prioridade na guarda.

A partir de 1962, a figura maternal passou a ser prioridade nas separações, “presumindo-se que a mulher poderia oferecer melhores cuidados aos filhos”, como escreve Elisa. Juridicamente, essa concepção deixou de existir em 1988, quando o melhor melhor interesse da criança se sobrepôs ao gênero. Socialmente, na visão de Elisa, esse papel de cuidado associado à mãe segue até os dias de hoje. 

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Para ela, uma breve análise das Estatísticas do Registro Civil, fornecidas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), permite identificar como o sexismo segue associado a essas discussões. Em 2019, em 62,4% dos casos de separação, a mãe ficava com a guarda criança. “Isso significa que a mulher ainda é reconhecida como a única responsável pelos cuidados com os filhos”, avalia.

A defensora pública, ao considerar que “o direito é evolutivo”, acredita que avanços nessa legislação tem acontecido, mas ainda há muito “chão pela frente.” Quando fala em evoluções, cita a incorporação da guarda compartilhada no Código Civil em 2008, por exemplo. “Se eu levantasse o debate do livro há sete anos atrás, algumas pessoas falariam que é um absurdo, que estou maluca. Inclusive, amigas minhas, em 2016, falaram que era irreal. Hoje em dia, elas falam que tenho razão. Não é mais sobre uma ideia inaplicável, mas sim como podemos trabalhar para mudar essa situação”, conclui ao falar sobre discussões de guarda que deem, cada vez mais, visibilidade às crianças. 

Quando você analisa um machismo institucional, também acredita que a legislação sobre guarda reforça a ‘masculinidade tóxica’, que afasta os homens da paternidade?

Com certeza, porque uma das atribuições do machismo é impor o que é papel de homem e o que é papel de mulher. Todo mundo sofre com isso, os homens também. Muitos homens são tolhidos de exercerem a sua paternidade porque entendem que não é o papel deles. Definitivamente isso não é o correto. Homens têm que se construir responsáveis por uma criança tanto quanto mulheres. 

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Uma coisa que é muito discutida na Europa e, aqui, está começando a chegar é discutir a licença paternidade, falar-se em licença parental. Óbvio que existe a questão da amamentação, que não deve ser negociada, porque é um item importantíssimo para a vida daquela criança. Eu acho que temos que avançar em questões sociais para que os dois tenham tempo de licença para se construir como pais ou mães. O homem também tem de ter essa participação. 

Quando você fala em objetificação, acredita que as crianças estão vivendo uma espécie de ‘subcidadania’ no Brasil? E, nesse sentido, como ficam as crianças de grupos minorizados? 

Eu acredito que o termo subcidadania entraria nesse grupo de crianças minorizadas. Como grupo abstrato, eu não chamaria todas as crianças como subcidadãs, eu diria apenas que são invisibilizadas. 

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Já os grupos minorizados, usaria a essa expressão sim, porque tem muito preconceito e muita discriminação ainda, cada grupo por um motivo. Crianças negras e pobres são alvos muito maiores de violência e estão muito mais sujeitas ao acolhimento institucional, que é o abrigamento. Crianças transsexuais e interssexonem existem para o direito. 

Se eu tivesse que resumir, diria que o Direito Civil trabalha com a ideia de uma pessoa que é plenamente capaz, que tem casa, carro e dinheiro no banco. Qualquer coisa que foge disso, o direito tem muitos problemas para resolver e às vezes ele joga as coisas para baixo do tapete, justamente por não saber resolver. 

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Em sua opinião, como podemos dar visibilidade para as crianças brasileiras? 

Primeiro é discutir. Acho que, em segundo momento, trazer mais essa palavrinha reconhecimento. Falamos tanto de sermos reconhecidos, mas reconhecimento não é apenas impormos nossa visão de mundo, mas sim conseguir olhar a visão dos outros e entender que não somos o centro, nós somos parte. O Feminismo Para os 99% (escrito por Cinzia Arruzza, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya) foi a inspiração para a palavra ‘cuidado’ que usei no livro, pois tive que traduzir para o Direito Civil, mas se eu pudesse teria escolhido a palavra ‘reconhecer’. 

É o que está em jogo nos movimentos negros, nos movimentos feministas, e não está em jogo no direito da criança, porque elas não se organizam politicamente - crianças de baixa idade, porque adolescentes, dependendo da idade, tem suas organizações políticas, mas como grupo grande é mais difícil. Então reconhecer e olhar um pouco mais seria uma parte central. 

Sobre soluções, eu indicaria algo que é muito legal, mas ainda muito restrito ao judiciário: oficinas de parentalidade. São cursos para pais que estão se separando, estão em disputa de guarda, em que são convidados a discutir esses papéis.

Não acho que precise mudar a lei, acho que não precisa não. A Constituição já diz que nós temos responsabilidade com as crianças e adolescentes. Talvez, seja preciso mudar a forma, ou como se diz, mudar a lente de olhar, mudar os óculos, ajustar essas lentes para que possamos enxergar melhor. 

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