Colecionador Rubens Borba de Moraes ensina a montar biblioteca em livro

Ele trabalhou com Mário de Andrade na criação do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, possibilitando o desenvolvimento de bibliotecas públicas

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Por Ieda Lebenzstayn
Atualização:

Faz tempo não proseamos. Não se proseia mais, muito menos a respeito de livros, imagine sobre livros raros. Tal já era a constatação-convite de Rubens Borba de Moraes em 1965, quando O Bibliófilo Aprendiz veio a Público, pela Companhia Editora Nacional. Eis que, aos 120 anos de nascimento de Borba, a BBM Publicações, da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin nos oferece uma edição de luxo: criação de Gustavo Piqueira/Casa Rex, a capa dura acamurçada cor tijolo, constelada de letras brancas, abre com a apresentação de Cláudio Giordano, traz o texto enriquecedor de Rubens, acompanhado de fotos de edições raras, e se completa com um apêndice e índice remissivo organizados por Luís Pio Pedro – todos bibliófilos. Homenagem à memória de Borba e contribuição à história, à biblioteconomia e à editoração, esse conjunto destaca, no dizer de Pio Pedro, “a erudição do autor, a fluência do texto, a familiaridade com o assunto e a importância do tema para os estudos relacionados, principalmente, ao livro no Brasil”.

O bibliófilo e colecionadorRubens Borba de Moraes Foto: Acervo BBM

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Companhia deliciosa para os leitores, porque espirituoso e instrutivo, O Bibliófilo Aprendiz traz um convite desde o próprio subtítulo, ao explicar o significado dos nomes que o compõem: “Prosa de um velho colecionador para ser lida por quem gosta de livros, mas pode também servir de pequeno guia aos que desejam formar uma coleção de obras raras antigas ou modernas”. Veja-se que bibliófilo é quem ama os livros e coleciona volumes raros, e aprendiz o novato, o iniciante, o que obtém conhecimento de uma arte, de um ofício.

Com potencial ético, de descoberta e compreensão do outro, a palavra aprendiz figura também no título do diário da viagem de Mário de Andrade à Amazônia e ao Nordeste do país, realizada em 1927-29: O Turista Aprendiz. Amigo de Mário de Andrade desde a infância e correspondente dele, Borba foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna em 1922. E contribuiu para fundar as revistas Klaxon, Terra Roxa & Outras Terras, Revista de Antropofagia, bem como o Diário Nacional.

Graduado em letras na Universidade de Genebra, em 1919, Rubens trabalhou com Mário na criação do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, possibilitando o desenvolvimento de bibliotecas públicas. Fundou o primeiro curso de biblioteconomia do Brasil e dirigiu a atual Biblioteca Mário de Andrade. Em 1939, estudou biblioteconomia nos EUA. Foi diretor da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (1945-1947), do Centro de Informações da ONU, em Paris (1949-1955), e da Biblioteca da ONU, em Nova York (1955-1960). Lecionou nos cursos de Biblioteconomia na UnB. 

Rubens Borba de Moraes publicou também, entre outros trabalhos: Domingo dos Séculos (1924); Bibliographia Brasiliana (1958); Bibliografia Brasileira do Período Colonial (1969); Lembrança de Mário de Andrade: 7 Cartas (1979). E saíram recentemente pela Publicações BBM: Rubens Borba de Moraes: Anotações de um Bibliófilo, com organização de Cristina Antunes, e Cartas de Rubens Borba de Moraes ao Livreiro Português António Tavares de Carvalho, com organização de Plinio Martins Filho. 

Demandam, pois, atenção os estudos de Rubens sobre livros e sua atuação em prol das bibliotecas. O Bibliófilo Aprendiz nos ensina que colecionar é “Pasárgada”: ajuda a resistir a guerras, à inflação, a frustrações. Mas cumpre estudar o assunto, ter erudição, para constituir uma biblioteca de valor. E à ciência sobre a raridade de um livro deve somar-se a coragem de pagar o preço pedido, movida pelo prazer de encontrar o exemplar desejado. Rubens discorre sobre razões da preferência por primeiras edições, como valor sentimental, fidedignidade do texto, possibilidade de acompanhar mudanças de estilo. E partilha muitos ensinamentos da história da conservação de livros, da restauração e também da encadernação.

“O senhor já leu todos esses livros?” Com bom humor, Rubens Borba nos lembra que cabe ao “bibliófilo introvertido” ter paciência com tal indagação, de quem nada entende de livros, o que infelizmente é comum. A pergunta figura no capítulo Mulher de Colecionador, em que aparecem o bibliófilo medroso, pronto a esconder da esposa os gastos com livros; a viúva criminosa, que lucra com a venda da biblioteca; o casal amador de livros. 

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Com a clareza e a contundência de quem detém a sabedoria intrinsecamente dos livros e da vida, Rubens aproxima bibliófilo e poeta, donos da consciência do valor de escrever poesia e colecionar livros raros, práticas que não servem para nada aos olhos de banqueiros utilitários. “Para essa gente pretensiosa não adianta explicar certas coisas, elas não chegaram ainda a um desenvolvimento cultural suficiente para apreciar coisas sem utilidade aparente.” Observando que o progresso material nos países mais desenvolvidos possibilita o amor à cultura, mas que todos são capazes de fruí-la, Rubens entende que a bibliofilia, mais que passatempo de homens cultos, é obra de benemerência. As grandes bibliotecas do mundo nasceram de coleções particulares alimentadas por doações.

Além do amor aos livros, podemos aprender com Borba a generosidade: ele doou sua biblioteca ao amigo José Mindlin, com quem partilhava a alegria de leitor apaixonado e colecionador de obras raras. Em Uma Vida Entre Livros: Reencontros com o Tempo, Mindlin expressa sua admiração por O Bibliófilo Aprendiz, “roteiro indispensável para quem esteja começando uma biblioteca, e releitura amena para quem vive no meio de livros”.

Tendo recebido em testamento a biblioteca de Borba, José Mindlin a conservou intacta, sem misturá-la com a sua, dada a compreensão de que “uma biblioteca exprime a personalidade de quem a formou”. É preciso ter e ler livros para formar a personalidade junto com a da biblioteca. Conversa fiada hoje? Pois é: faz tempo não proseamos.

*IEDA LEBENZSTAYN É CRÍTICA LITERÁRIA COM PÓS-DOUTORADO NA USP. AUTORA DE ‘GRACILIANO RAMOS E A NOVIDADE: O ASTRÔNOMO DO INFERNO E OS MENINOS IMPOSSÍVEIS’

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