Na caixa de filmes Caça às Bruxas no Cinema, a Versátil Home Video redescobre quatro obras distintas, que visitam um dos momentos mais vexatórios e arrogantes do percurso humano, a Santa Inquisição. Relembrar um momento tão obtuso e, ao mesmo tempo, tão crucial no entendimento daquilo que chamamos “civilização”, tem especial importância em tempos esgarçados.
Abrindo a seleta, O Caçador de Bruxas (1968), de Michael Reeves, com a figura imponente e ameaçadora de Vincent Price, ídolo das matinês de terror em seu tempo, apresenta ao espectador o conceito geral de uma idade de trevas, em que conflitos políticos e vantagens religiosas grassam uma com a outra no oculto das decisões travestidas dos mais nobres intentos para o bem comum. Durante a Guerra Civil Britânica, um soldado do exército de Cromwell se vê obrigado a abandonar as batalhas para vingar-se de um inquisidor que estupra sua noiva, acusa-a de bruxaria, mas a chantageia em troca de uma ilusória absolvição. Produzido pela Tigon, que pretendia ser uma nova Hammer no mercado cinematográfico dos filmes de horror, certamente não é uma obra que perdure. A trama é apressada, a direção de arte cumpre papel apenas funcional, os personagens têm a psicologia e a motivação rasas, mas o espectador mediano da época não deve ter se decepcionado. O exotismo do baixo orçamento torna-se, hoje, algo menos importante que a mensagem de intolerância e rancor impressa nas cenas de torturas.
Por falar na volúpia do sofrimento alheio, Inquisição (1978) funciona mais como um passeio por fantasias sexuais reprimidas e menos como documento histórico. Usando a depravação dos inquisidores como desculpa para explorar o erotismo de belas atrizes e para lacerações ao melhor estilo gore, o filme nos apresenta a Bernard, um implacável juiz que se apaixona por aquela que deveria ser sua vítima, uma jovem acusada de entregar-se ao demônio, por mais que os pecados da jovem nada mais sejam do que sintomas de uma extrema reação ao assassinato premeditado de seu noivo. Como a obra anterior, este filme pertence a uma vertente do cinema B, muito cultuado em seu tempo e mais aclamado ainda hoje. Por um momento os excessos dos julgamentos sacrossantos deixam de parecer uma reconstituição e passam a um tom de fantasia, de irrealidade perversa.
No entanto, não só do sensacionalismo se alimenta a seleção proposta pela Versátil. Como contraponto, temos As Virgens de Salém, com roteiro de Jean-Paul Sartre, baseado na peça de Arthur Miller. O filme mergulha no cerne da austeridade ferrenha com que vivem os cidadãos de Massachusetts, colônia conservadora do Novo Mundo. O argumento parte de um triângulo amoroso, que extrapola o âmbito da intimidade e desencadeia uma sorte de desgraças coletivas. Com isso, a possessão demoníaca passa a alegorizar a histeria da qual sofrem as jovens achacadas pelos patriarcas da nação. Há, também, algum espaço para a crítica ao cinismo das instituições: “Não há bruxas entre os ricos”, conclui o dono de uma venda local, sintetizando como os guardiões da moral em Salém escolhem aqueles que estão ou não possessos. Talvez, o personagem mais lúcido seja John Proctor, justamente aquele que será enforcado após um conturbado julgamento, quando profere a máxima nietzschiana “Deus está morto”. É assim que as narrativas sobre a intolerância ao largo dos séculos se encontram no filme, para criar um código atemporal e universal, em que a bruxaria surge como metáfora da desintegração do ser e de seu tempo. A obra dirigida por Raymond Rouleau não envelheceu bem.
Há que se notar que a fé criou meios engenhosos de tortura e humilhação em nome de uma pretensa salvação do pecador e redenção do inquisidor. Também é marcante a eficácia com que a Igreja induzia seus réus a produzir fantásticas ficções para justificar o tribunal. Ficções que cristalizam as perversões mais libidinosas dos algozes, travestidas de um conhecimento enciclopédico das manobras do inimigo. Tudo isso dá a tônica de O Martelo das Bruxas (1970), de Otakar Vávra, expoente do Novo Cinema Checo, que se baseia no livro Malleus Maleficarum.
O filme de Vávra é o único a não se preocupar com reconstituições de rituais diabólicos ou ataques histéricos tidos como possessões. A trama investe nos motivos escusos por trás da caça às bruxas. Por um lado, a guerra declarada por um juiz beberrão e devasso tem por objetivo manipular a nobreza de uma cidade no interior da Checoslováquia e obter vantagens financeiras com o grande número de expropriações de bens daqueles que são condenados à fogueira. Por outro, há a face manipuladora da Igreja, que visa a aumentar seu poder de influência e acabar com ondas de migração turca. O didatismo mescla-se harmoniosamente com a estética dessa obra quase desconhecida no Brasil. Com isso, se torna o filme mais sóbrio e analítico da coletânea.*DONNY CORREIA É DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP