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Com a cabeça na crise

De um lado, o surto especulativo abala as certezas do mercado financeiro. De outro, desorienta quem apostava todas as fichas em ser reconhecido e alavancado pelo sucesso econômico

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Por Redação
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Houve uma época, em um país, em que as pessoas vendiam seus bens em troca de flor. Não por romantismo, nem para compensar a emissão de gás carbônico na cara da natureza. Vendiam para especular. A época era 1636/1637; o país, a Holanda; a flor, a tulipa. A conseqüência: a corrida desenfreada atrás de sementes e bulbos e, na falta deles, títulos, sem que o povo atentasse para a debilidade da situação. É a primeira crise especulativa de que se tem nota, "um surto maníaco-depressivo", como destaca o economista Eduardo Giannetti da Fonseca, que recupera a crise das tulipas para falar da repetição desses movimentos de mania, seguidos de crash e pânico, ao longo da história financeira moderna. Do outro lado da mesa, o psicanalista Tales Ab?Sáber aquiesce: "Existe a compulsão à repetição de um sistema que se autodesorganiza". Se a crise financeira atual tem raiz semelhante à do século 17, ela se espelha em parte na de 1929 e resvala na do Japão de 1990. Ou nos remete à fracassada estratégia militar da Linha Maginot, construída pelos franceses na 2ª Guerra para barrar o avanço alemão: ali deu errado porque se tentou solucionar o presente com táticas do passado. E agora? Repetiremos a fórmula? Neste encontro, que inaugura a série Diálogos Aliás, Giannetti, autor de O Livro das Citações, e Ab?Sáber, escritor de O Sonhar Restaurado, debatem sobre as inseguranças econômicas e psíquicas do nosso tempo. Tempo em que a reação ao movimento bipolar da bolsa é instantânea e desagregadora. Tempo em que a criatividade para burlar a regulamentação do mercado é insidiosa e compulsiva. Tempo em que a escalada armamentista do consumo é apavorante, porque estabelece quem tem direito a existir neste mundo e quem não tem. A seguir, o embate de idéias entre os dois especialistas, mediado pelas jornalistas Flávia Tavares e Mônica Manir. O DIAGNÓSTICO Eduardo Giannetti da Fonseca - Não estamos vivendo uma depressão no sentido econômico. Uma depressão é caracterizada pela duração e intensidade. É uma queda muito forte do nível de atividade econômica e uma perda de produção que adquirem uma condição crônica de permanência. Um episódio bem claro disso no século 20 é a Grande Depressão dos anos 30. Já o que ocorreu no Japão nos anos 90 não chegou a ser tecnicamente uma depressão. Foi uma recessão longa, mas não houve perda de 30% do PIB, como nos Estados Unidos. E acho muito pouco provável que essa crise financeira atual desemboque num quadro depressivo, embora uma recessão de um ou dois anos seja altamente provável. Tales Ab'Sáber - Do ponto de vista psicanalítico, nem sempre existiu a noção de depressão como entidade clínica. Ela é recente, surge nos anos 70. De fato, a depressão existe hoje entre nós e tem níveis. Existe a depressão que os psiquiatras consideram doença orgânica. É um nível de paralisação global do sujeito e de seu desejo. Existe uma depressão cotidiana decorrente dos próprios modos de existência, do desgaste pelo excesso de trabalho e um fundo de vazio com o qual as pessoas precisam lidar. Há ainda a depressão dos não-incluídos na renda e no consumo. Agora, tem uma depressão interessante, que Melanie Klein (psicanalista austríaca) chama de posição depressiva. É a capacidade de suportar o luto pelo fim de realidades que não são reais. Essa é uma depressão produtiva, que cria uma capacidade de pensar. A crise contemporânea, o estouro dessa bolha, passa por uma elaboração dessa natureza. Giannetti - Quadros como esse que estamos vivendo se repetem. A crise das tulipas na Holanda, no século 17, foi um surto maníaco-depressivo. Começaram a especular com flores, que adquiriram preços extravagantes. Houve um surto especulativo, de euforia, as pessoas achavam que tinham muito mais do que realmente podiam exercer em termos financeiros. Quando o mundo desaba, as pessoas entram num estado, também exagerado, de depressão, angústia e ansiedade. Usa-se muito o termo "mania" em economia. A mania é seguida do crash e do pânico. O surpreendente é que esses movimentos de mania e depressão se reconstituem ao longo da história financeira moderna. O PESO DA ECONOMIA Giannetti - Eu me pergunto se em alguma outra época da história da humanidade já se atribuiu tanta importância ao econômico e financeiro como na nossa. Na Antigüidade, na Idade Média, no Renascimento, no início da Modernidade, o valor do econômico se exacerbou dessa maneira? Vemos pessoas acompanhando bolsas de valores em cinco continentes, todos os dias, e às vezes elas não conhecem seu vizinho. Ab'Sáber - Essa é uma questão importante. Todo o esforço que vemos é para repor a ordem no mesmo circuito que produziu a crise. É um trabalho histórico para garantir a repetição de um sistema que se autodesorganiza. Temos agora esse momento aberto, em que poderíamos pensar em novas formas de regulação, em outras ordens de circulação dos sentidos. As respostas seriam outras. Mas não sabemos como seria a organização desse outro plano de respostas. Giannetti - Mas eu insisto. Por que o reconhecimento do outro hoje está tão calcado nos valores do econômico, da posse, do consumo, da ostentação? Os gregos tinham ciência, filosofia, estética, e nunca se preocuparam em mobilizar o conhecimento científico para assuntos econômicos. Na Idade Média, a vida era organizada em torno da religião. O modo contemporâneo é a busca da aprovação por meio da métrica econômica. A tentativa de suprimir isso levou a desastres no século 20. Talvez os países mais apegados hoje ao mundo material sejam exatamente aqueles nos quais se buscou reprimir esse anseio de reconhecimento pelo sucesso econômico. Na Rússia, onde estive recentemente, fiquei chocado com o poder do dinheiro no comportamento humano. Ab'Sáber - A meu ver, isso é a universalização do sistema da mercadoria nas relações pessoais e entre as nações, em todos os níveis. Mas porque essa massa de dinheiro é privada, o que resulta disso é uma concentração imensa de decisões: uma concentração geopolítica e em pessoas, setores e classes. O dinheiro virou a referência. E países periféricos, como o Brasil, não conseguem reproduzir esse fluxo na mesma escala. Por isso, temos sempre uma crise perversa de um setor que reproduz essa dinâmica central e de uma parte da população que lida com a exclusão. O historiador americano Kenneth Serbin recentemente escreveu sobre isso: os EUA mudaram a moral da poupança e da responsabilidade do trabalho para a moral do consumo. Uma economia hiperalavancada no endividamento necessita de uma subjetividade hiperalavancada no consumo. AS REAÇÕES Giannetti - Uma coisa é a dinâmica da crise financeira em si, outra são as seqüelas mais permanentes, que ficam para a economia real. Estamos na transição entre uma e outra, mas o tempo de acontecimento das coisas se acelerou vertiginosamente. No século 19, quando os juros aumentavam nos EUA, saía um navio carregado de ouro da Inglaterra para aplicar no mercado americano. Hoje isso acontece em segundos, o que provoca ainda mais instabilidade. A insegurança em relação ao futuro pode levar a dois tipos de comportamento. Primeiro, o de viver intensamente o presente. Se a previsibilidade do mundo cai muito, as pessoas optam por esquecer o amanhã. É o que acontece em situações de guerra ou de epidemias. Aliás, um dado curiosíssimo é que, depois do 11 de Setembro, a demanda por produtos dietéticos caiu drasticamente. As pessoas ficaram tão inseguras em relação ao futuro que não viam mais razão para sacrifícios. A outra resposta, diametralmente oposta, é que, se o futuro é tão incerto, é melhor se precaver. Hoje, os que detêm ativos financeiros, como os bancos, estão indo para uma postura incrivelmente defensiva para reduzir suas vulnerabilidades, por isso travam os fluxos de crédito. Ab'Sáber - Mas o que tenho visto no consultório é que a crise ainda não alcançou a vida real, está distante da realidade das pessoas. Elas se "desresponsabilizaram" de tal modo que, apesar de saberem que existe uma crise, isso se torna problema dos governos ou dos senhores do dinheiro e, portanto, não existe. É uma negação. As pessoas aprenderam a não ser sujeitos dos processos históricos que as envolvem. Elas só passam a se envolver quando perdem o emprego, por exemplo. Essa dimensão do espaço público não é mais um vértice da subjetivação das pessoas, o que é uma pobreza democrática. Giannetti - Tem uma anedota que mostra a diferença entre recessão e depressão. Recessão é quando seu vizinho perde o emprego. Depressão é quando você o perde. Enquanto a crise acontece, uma reação comum é a de esperar para ver. Vamos ver o que realmente muda depois do tsunami; só então tomaremos decisões que tenham implicações de longo prazo. Ab'Sáber - Só que isso depende muito do nível de inserção do sujeito na dinâmica econômica. As empresas que tomaram um capote no dólar tiveram de tomar decisões imediatas vitais. Nós, com nosso pequeno nível de salário, temos a dúvida se vamos guardar dinheiro para viajar, por exemplo. É outra escala. E outras pessoas, com a renda ainda inferior, falam "não tenho nada a ver com isso", porque, seja qual for o resultado, elas vão continuar na mesma posição. Giannetti - No Brasil, temos indícios de que até para a população de menor renda a vida mudou um pouco. O acesso ao crédito ao consumidor, por exemplo, está mais restrito. Quem sonhava adquirir bens de consumo, automóveis, etc. já está percebendo que não será tão fácil como vinha sendo. Mas a coisa fica realmente séria quando chega ao emprego e à renda, à segurança econômica da pessoa. Ainda não é claro se isso vai acontecer. A FACE INJUSTA Ab'Sáber - A grande injustiça dessa crise é uma questão de política macroeconômica. É o Estado mobilizando massas de dinheiro para salvar empresas privadas para que elas se reponham na mesma ordem. Posso perguntar: "Por que não dão dinheiro para mim?" Giannetti - Concordo. Enquanto os bancos ganhavam uma fortuna, os lucros eram privados. Quando se tem prejuízo, socializa-se. Tem alguma coisa eticamente errada aí. Ab'Sáber - E como as massas, que estão viciadas em consumo e numa alienação democrática, vão reagir a mais essa perversão da ordem capitalista? Giannetti - Veja, o prejuízo seria ainda maior se o governo não fizesse nada. Foi o que aconteceu em 1929. O governo americano deixou que os bancos e as empresas resolvessem a confusão que criaram. O secretário do Tesouro da época, Andrew Mellon, tinha a seguinte frase: "Liquidar, liquidar, liquidar, até que todo crédito apodrecido seja purgado do sistema". Foi exatamente o que levou à Grande Depressão. Mais de 900 bancos quebraram nos EUA em poucos meses. A única preocupação do Tesouro americano era equilibrar as contas públicas. Ab'Sáber - Se o Estado é convocado para fazer uma reparação de ordem privada, porque isso é de interesse coletivo, é preciso pensar se não é possível convocar o Estado em outras esferas de necessidades coletivas. O papel do Estado é esse? É o reparador? Giannetti - Mas o Estado intervém o tempo todo. Que garantia temos de que não vamos comer comida estragada num restaurante? A garantia é que existem leis de higiene e padrões que o Estado fiscaliza e multa quando não são cumpridas. Não existe mercado sem regulamentação. Só que o mercado financeiro é muito mais escorregadio. E houve uma aposta, que se mostrou absolutamente falha, na auto-regulamentação. Foi o que gerou essa mega encrenca. Agora, não tenho dúvidas de que vai haver um surto regulatório no mercado financeiro. O problema é que a regulamentação vem para tentar evitar surtos como os que já aconteceram. Uso muito o exemplo da Linha Maginot, que os franceses construíram no início da 2ª Guerra Mundial, para se proteger da invasão alemã. Era uma defesa de trincheiras, que teria servido muito bem na 1ª Guerra Mundial. Mas a França estava lutando a guerra passada. Os alemães vieram com uma nova estratégia militar e passaram pela Linha Maginot como se ela não existisse. As tentativas de regulamentar o mercado financeiro são linhas Maginot. Os executivos financeiros são muito mais criativos do que os burocratas do governo. É uma corrida armamentista. De um lado gente tentando encontrar maneiras de driblar as restrições e, do outro, gente tentando cercear e restringir. Ab'Sáber - Esses executivos financeiros são os hackers da realidade. Vão tentar achar brechas no sistema de regulamentação, em que criarão uma nova ordem de negócios que vai ser real apenas por um tempo. Não podemos dizer que isso seja da natureza humana, porque existem sociedades não fundadas num princípio como esse. Isso é da natureza do capitalismo. E o capitalismo é o excedente. Até onde vai a dinâmica por excedente, e seria esse o modo mais interessante de gerir a tecnologia humana? Giannetti - Outras sociedades tinham excedentes também e não davam a eles uma destinação econômica. Davam uma destinação religiosa, construindo templos, fazendo enormes sacrifícios. Ou uma destinação militar, para agredir outras sociedades e dominá-las. Eu evito a palavra "capitalismo", porque não sei mais o que isso significa. Usar o mesmo termo para descrever o sistema econômico do século 16 até hoje é duvidoso. Se usarmos o termo "economia de mercado", saberei do que estamos falando. Capitalismo é uma substantivação do sistema econômico que o torna sujeito de alguma coisa. O sistema econômico não age, não decide. Dizer que o capitalismo fez isso ou aquilo, impõe isso ou aquilo... É preciso tomar cuidado para não tornar sujeito uma abstração. O único sujeito que eu conheço é o indivíduo. Ab'Sáber - Eu discordo. Um psicanalista pressupõe um sujeito que "não existe", o inconsciente, de que a consciência individual não dá conta. Mas sabemos que o inconsciente existe. É possível, sim, haver sujeitos abstratos que não estão encarnados no indivíduo. E um exemplo é o capital, que produz essa dinâmica de sugar todos para o campo do dinheiro e do mercado. Evidentemente, o capitalismo contemporâneo não é o mesmo do século 17, mas o princípio é o mesmo. Agora, podemos olhar o sistema e seus limites. Não existe ainda força histórica para de fato pensar alterações nessa ordem de existência. Os privilegiados dessa ordem vão arrastá-la sempre para o mesmo eixo. AS REFERÊNCIAS DE SOLIDEZ Giannetti - Uma imagem que costumo usar, de um filósofo árabe do século 11, chamado Avicena, é a metáfora que melhor descreve a situação atual. Uma pessoa caminha por uma tábua estreita, sem nenhuma dificuldade, enquanto acredita que essa tábua está apoiada no chão. Mas essa mesma pessoa vacila e despenca ao se dar conta que essa tábua está suspensa sobre o abismo. A situação objetiva é a mesma. O mercado financeiro vinha caminhando com desenvoltura sobre uma tábua estreita, acreditando que o mundo que a sustentava era sólido. De repente, houve a percepção de que um pedaço desse mundo era pó. Os investidores se desequilibraram. Aí, veio o Estado e colocou uma rede de proteção embaixo, para que isso não se torne um desmonte completo. Não só na economia, mas na vida em geral, nós subestimamos a insegurança do mundo. Talvez não seja de todo mal fazer isso, porque se nos déssemos conta da precariedade das coisas com as quais contamos, nos deprimiríamos para valer. O DETONADOR Giannetti - Houve uma hipertrofia do mundo financeiro em relação ao resto da economia e da sociedade. Esse boom financeiro adquiriu proeminência na economia total, o que se revelou insustentável. Há dois fatos que me chamam a atenção. Primeiro, o lucro dos bancos americanos em 1980 representava 10% do lucro total dos EUA; no ano passado, o lucro desses bancos significou 40% do lucro total dos EUA. Qual é a contrapartida que justifique os bancos se apropriando de quase metade do lucro total da economia americana? Isso é masturbação financeira. O outro fato: a dívida total dos EUA, entre 1950 e 1980, envolvendo o governo, as famílias e as empresas, oscilou em torno de 150% do PIB americano. Era uma vez e meia o valor total da produção dos EUA durante um ano. De 1980 em diante, essa curva entrou numa ascendente e se revelou explosiva, chegando a 350% do PIB americano no ano passado. Ou seja, é uma sociedade que está claramente vivendo além dos seus meios e jogando a conta para o futuro. A coisa explodiu. Acho quase inevitável o encolhimento do tamanho do financeiro em relação à chamada economia real. A CRIATIVIDADE DO MERCADO Giannetti - Alguns executivos financeiros voltaram todo o seu talento para encontrar maneiras de enriquecer rapidamente manipulando papéis. Não são coisas ilegais, nem imorais, em boa parte. Ninguém está roubando. Quando falo de pessoas criativas, não falo de gente mal-intencionada, de caráter duvidoso. As pessoas querem ter carros, querem ir para a Europa, que seus filhos freqüentem escolas particulares caras, acham que têm direito a isso. Os chineses e os indianos também querem, os brasileiros não vão ficar para trás. A humanidade entrou nessa armadilha, nesse jogo do qual não sai. Se fosse uma conspiração de poucos, seria um problema muito mais tratável. Ab'Sáber - É que há um poder técnico imenso da humanidade em estoque, todo orientado pela gestão do mercado, que é a gestão do excesso da competição. Esse poder técnico precisa ser de algum modo libertado para outros planos. O ser humano é inteligente, tem tecnologia e pode operar essas potências com outra ordenação, mas o problema é que a ordem de todo o poder do mercado suga essas potências humanas. Agora, as pessoas têm a intuição de que há um limite interno. A própria dinâmica chega a uma irracionalidade profunda que cria espaços de catástrofe. O mercado não é integralmente racional nem garantia de estabilidade. Não é. O MEIO AMBIENTE Ab'Sáber - A gente vê as forças públicas voltadas especialmente para alavancar a dinâmica de mercado. Por que não alavancam uma dinâmica de equilíbrio ambiental? Giannetti - De fato. Um tema fundamental é o meio ambiente, a restrição que vai se impor de fora para dentro se essa escalada armamentista do consumo se perpetuar. Quem sabe essa crise - e acho que é mais um sonho do que um prognóstico- não nos dê uma pausa para repensar o que realmente se justifica em termos de existência humana. Será que estamos fazendo uma utilização razoável e prudente do meio natural? Quando vejo bilhões de chineses e indianos querendo consumir desesperadamente como os ocidentais, me pergunto: será que isso está sendo imposto a eles ou será uma aspiração que parte deles? E em nome de quê ela vai ser cerceada agora? Ab'Sáber - Há uma noção importante em psicanálise que é o apego ao próprio sofrimento. Freud usou uma idéia forte e transcendental de compulsão à repetição. Uma crise como essa é um corte necessário para se pensar as possibilidades de alterar a ordem da repetição. Mas a gente ainda não tem estrutura subjetiva suficiente e fóruns políticos para dar conta da nossa situação global. Talvez essa crise possa começar a produzir esses espaços. A questão política interessante é se o próprio sistema vai voltar a se auto-regular ou se vai ser regulado de fora por uma regulamentação que é um campo de outra ordem. A questão ecológica é isso: um campo de outra ordem. AS RESPONSABILIDADES Giannetti - Deixa eu dar um exemplo trivial que me chamou a atenção. A British Airways, empresa aérea britânica, dado que a população lá está tão preocupada com mudanças climáticas, abriu uma opção na compra do bilhete para que as pessoas pagassem um adicional a fim de ser feita a compra do crédito do carbono daquela viagem aérea. Se as pessoas estão tão preocupadas com isso, pensaram, vamos dar a opção para que paguem e compensem o gás carbônico que emitem durante o trajeto. A adesão é ínfima. Todos dizem estar perdendo o sono por causa do meio ambiente, mas na hora de comprar o crédito de carbono correspondente à sua viagem pessoal por meio aéreo que, a propósito, é uma extravagância sem tamanho do ponto de vista ambiental, não querem pagar. Ab'Sáber - Mas isso também é sociabilizar o prejuízo, vender a responsabilidade coletiva. Giannetti - Não, é um custo que se impõe à humanidade. Ao pegar um avião e cruzar o Atlântico, você está jogando mais gases na atmosfera do que um indiano jogará numa vida inteira. A pessoa não quer incorporar essas responsabilidades. A MUDANÇA DE VALORES Ab'Sáber - No centro do capitalismo vai haver uma mudança de valores e objetos nos próximos anos. A ideologia de todo o poder e de toda a existência pelo hábito de consumir deixa pessoas doentes, tanto do ponto de vista dos que têm dinheiro quanto dos que não têm. Os que têm dinheiro e uma vida deformada por ele perdem todos os parâmetros de valores humanos; os que não têm e precisam existir no plano do dinheiro também se despedaçam nessa tensão. Essa cultura chegou a um limite agora. Acho que a retirada desse eixo econômico que não é real deve ter um impacto simbólico, abrindo espaço para outros campos de valores na economia, na política, na existência. Como isso vai repercutir no espaço público, a gente não sabe ainda. Mas seria interessante parar de conceber a vida como um ato de consumo mágico. Giannetti - Até gostaria de acreditar em mudanças de valores com base em amadurecimento, mas a história não nos autoriza a imaginar que isso seja simples. E duvido que aconteça desta vez. A geração dos anos 60, por exemplo, achou que jamais viveria de acordo com os valores que tinham presidido a vida de seus pais e avós. E, no entanto, nos anos 80, houve uma regressão aos valores dos anos 50, com os personagens dos anos 60 sendo os banqueiros de agora. Pegue os anos 20 nos EUA e na Inglaterra. Havia jovens imaginando uma vida futura muito diferente daquela que seus antepassados tiveram. Keynes (economista britânico) é parte dessa geração. Ele tem um ensaio chamado Possibilidades Econômicas para os nossos Netos, em que pinta um mundo onde o problema econômico não absorveria mais o melhor das energias e do trabalho humano. Os netos de Keynes são da minha geração, e acho que o problema se exacerbou. Está bem claro a essa altura que, quanto mais se avança na dimensão do econômico, mais obcecado se fica em relação ao próprio econômico. Faço um paralelo com a medicina. Enquanto uma pessoa está doente, seu objetivo maior é restaurar a saúde. No momento em que tem saúde, ela se liberta para fazer as coisas que realmente deseja na vida. E se essa pessoa fica obcecada em melhorar a sua saúde sem pensar em outra coisa? No econômico é isso que vem acontecendo há tempos. O PROGNÓSTICO Ab'Sáber - Não se sabe que setores serão afetados em cada país, como isso vai paralisar a economia real, quanto. Há quase um ano se diz: "Nada sério está acontecendo". E a cada semana acontece uma coisa muito mais séria. É um vértice angustiante, ninguém sabe como isso vai se configurar. Na crise de 29, foram dez anos de graves conseqüências econômicas. Essa pode ser a dimensão trágica da existência humana, mas também pode ser a dimensão depressiva da Melaine Klein, algo mais profundo a aprender. Não há condições coletivas ou históricas para um aprendizado que nos retire desse circuito de repetição. Insisto que há elementos aí para se aprender; pode-se pensar a própria irracionalidade da ordem tida como racional. Seria um projeto de horizonte de trabalho humano, que precisaria constituir instituições, construir um horizonte de outras estruturas. Mas ainda não temos imaginação para isso. Giannetti - Acho que a crise virá, mas ela será imposta por crises ambientais. Essa é a minha intuição. A humanidade vai caminhar para situações agudas de desequilíbrio climático e ambiental, e aí o imperativo de encontrar outras formas de organizar nossa existência na sociedade vai se impor de maneira muito mais sofrida e violenta. Vai ser pelo caminho da dor, da calamidade, da maneira mais custosa, mais burra. Infelizmente. VÍCIO "Todo o esforço que vemos é para repor a ordem no mesmo circuito que produziu a crise" RAZÃO "O mercado não é integralmente racional nem é garantia de estabilidade. Não é"

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