
19 de setembro de 2020 | 16h00
Sempre sonhei com uma viagem de trem da Califórnia ao Canadá, cruzando aqueles cinematográficos campos e vales do Oregon, passeio que nunca fiz em minhas idas à Costa Oeste e estou certo de que jamais farei. Pela Amazônia andei duas vezes, inclusive de catamarã de Belém a Manaus, e uma vez pelo Pantanal—ao menos isso consegui fazer. Aqueles tesouros naturais, se não desapareceram, deixaram de ser como eram.
O “inferno verde” ficou vermelho, em vários pontos virou cinza—tudo acabado e nada mais. Cruzar de carro a Transpantaneira, parando para esperar a cobra atravessar a estrada ou diminuindo a marcha para os pesados, tristonhos e lerdos tuiuiús alçarem voo em nossa pista tornaram-se imagens e sensações exclusivas da memória e assim deverão permanecer.
Não consigo reproduzir com a precisão necessária a excruciante dor que me provocam as imagens do holocausto da fauna no cerrado, no Pantanal, na Amazônia e no Oeste americano que nos alcançam pela TV, e há uma semana parei de ver. São ecologicamente pornográficas.
Dois meses atrás, o Oregon estava em chamas metaforicamente. As ruas de Portland tomadas por protestos antirracistas, os guardiões da lei e da ordem baixando a lenha nos manifestantes a mando do alaranjado tuiteiro da Casa Branca. O furdunço chegava pela TV e pelo celular; quem quisesse podia desligar um e outro e ir aparar a grama do jardim, espairecer, alienar-se do quebra-quebra. Aí veio o fogo de verdade. Inescapável. A grama primeiro secou e, junto com a mata e as casas, também se incendiou.
Estávamos no Antropoceno; com a invasão dos bárbaros, entramos (ou caímos) no Trumpoceno e sua ramificação, o Bozoceno, com seus flagelos superlativos: a maior crise sanitária em um século e queimadas nunca vistas, em frequência, quantidade, extensão e danos, naturais e materiais. Parafraseando duas poesias de T. S. Eliot, na terra arrasada, homens ocos acompanham o mundo expirar, não com uma explosão, nem com um suspiro, mas com o crepitar de árvores incandescentes e gemidos de animais em agonia.
Os dois campeões mundiais de mortes pela covid bisam a dobradinha no apocalipse ambiental. Não é coincidência; ambos morticínios tiveram a mesma origem: o negacionismo terraplanista, o não à ciência, o boicote aos alarmes sobre aquecimento global.
Trump e seu companheiro de realidade virtual baseado em Brasília fizeram vista grossa para as duas calamidades o quanto puderam, mas acabaram tragados pelas chamas do mundo real. Alertados por cientistas, preferiram ignorá-los e desqualificá-los, e, no sufoco, jogar a culpa no inimigo mais conveniente.
Trump increpou os chineses pela pandemia e os democratas pelas labaredas. Há dias, Joe Biden, o candidato democrata à sucessão presidencial em novembro, definiu o rival como um “climate arsonist” (incendiário climático). Bolsonaro nem precisa ficar de cócoras para caber nessa alcunha.
No meio da semana, o jornal britânico Telegraph definiu o nosso Trump tabajara como “o homem que quebrou o Brasil”. O Telegraph é tão conservador, que nem os mais insanos bolsominions ousaram acusá-lo de comunista. “O homem que queimou o Brasil” seria mais atual, cabendo ao leitor especular se o presidente queimou tudo para não deixar provas.
Enquanto o Telegraph queimava Bolsonaro, a ONU recomendou uma investigação internacional contra o Brasil por agressões aos Direitos Humanos e ao Meio Ambiente. A própria ONU hospeda, a partir da próxima quarta-feira, uma reunião de cúpula sobre o Meio Ambiente, na qual o secretário-geral da entidade, António Guterres, só quer a presença de países que possam oferecer mudanças significativas no combate à emissão de gases do efeito estufa e ao fogaréu em curso. Por esse critério, se rigidamente seguido, os EUA e sua maior colônia ao sul do Rio Grande não deveriam ter sido convidados. Mas foram.
O que o governo Bolsonaro tem para mostrar na cimeira climática, além dos últimos atestados de sua incompetência? Aquele vídeo fajuto, com dados mentirosos, exaltações vangloriosas e até velhas imagens pirateadas do Greenpeace? Mas ele já foi visto e internacionalmente desautorizado pelas imagens do espetáculo de Feu et Lumière em nossas florestas, sob o alto patrocínio da agroganância e da garimpagem ilegal.
Quando o general Hamilton Mourão assumiu a coordenação do Conselho da Amazônia, em fevereiro, os menos pessimistas pensaram: Ricardo Salles vai cair. Mas o ministro não só foi mantido como czar do ecocídio como continuou com sua ação de saúva, incentivando a burla às regulamentações ambientais com metáforas de vaqueiro (“deixa passar a boiada”), batendo boca com Leonardo Di Caprio, e relegando Mourão ao nada honroso papel de mero gestor de queimadas.
Mais preocupado com supostos vazamentos de informações sobre desmatamento e incêndios (disponíveis na internet) do que com a implantação de uma política climática e florestal eficaz, Mourão, por enquanto, só brigou mesmo com os satélites que servem ao Inpe. Não temos um plano nacional de combate aos incêndios porque o governo não sabe, não pode e não quer fazê-lo.
Como um pouco de humor não faz mal a ninguém, não produz mortes, fumacê tóxico, nem contamina a água com degetos químicos, um bem-humorado internauta sugeriu dia desses que se trocasse a última estrofe do Hino Nacional de “pátria amada, Brasil” para “pátria queimada, Brasil”. Não dá na métrica, mas, neste caso, o que importa é o conteúdo, não a forma.
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