PUBLICIDADE

Comédias do Império Romano oferecem ensinamentos ao século 21

'O Asno de Ouro' de Apuleio e 'Os Adelfos' de Terêncio ganham novas traduções no Brasil

Por Marcelo Tápia
Atualização:

O que podemos buscar, num momento como este, para estender nossa visão da experiência humana? Ultrapassar os limites de nosso tempo por meio da “ponte necessária” que é a tradução favorecerá, creio, o abrandamento de angústias presentes. Será proveitoso, caro leitor, embrenharmo-nos no longínquo mundo antigo por meio de duas obras latinas, ambas destinadas ao riso: O Asno de Ouro (Asinus Aureus), de Apuleio, em tradução da escritora Ruth Guimarães (1920-2014), e a peça Os Adelfos (Adelphoe), de Terêncio, traduzida pelo poeta e professor Rodrigo Tadeu Gonçalves. 

Mosaico bizantino mostra homem alimentando mula Foto: Hagia Sophia Research Team

PUBLICIDADE

De início, é conveniente observar que uma obra literária é sempre outra quando traduzida, pois é recriada em outro idioma; entre as referências que orientam as escolhas no processo de traduzir estão as anunciadas pelo pensador alemão Friedrich Schleiermacher (1768-1834): “Ou bem o tradutor deixa o escritor o mais tranquilo possível e faz com o leitor vá a seu encontro, ou bem deixa o mais tranquilo possível o leitor e faz com que o escritor vá a seu encontro” (em tradução de Celso Braida). Pois bem: as obras que ora comentamos – cujos originais derivam de obras gregas anteriores – apresentam tendências divergentes quanto a essa orientação; iniciemos por aquela que deixa mais tranquilo o leitor.

Temos muito a aprender – e a nos divertir – com o burro de Apuleio (séc. 2 d.C.). Primeiro, em relação a como contar histórias: único romance latino que chegou inteiro até nós, não só revela as aventuras do jovem Lúcio – que, devido a sua curiosidade pela mágica das metamorfoses, é transformado em asno após beber a poção errada, mas sem perder sua inteligência –, como inclui outras narrativas, contadas por personagens ouvidas por Lúcio. Desventuras, atos sórdidos, violências, injustiças e prazeres de toda espécie surgem nesta múltipla representação da vida privada na Grécia da época, enquanto Lúcio – submetido a sucessivas provações – não recupera a sua forma humana. Como diz Mikhail Bakhtin (em tradução de Paulo Bezerra), “para a espreita e a escuta da vida íntima, a condição de Lúcio-asno é excepcionalmente favorável”...  Nesta segunda edição (a primeira é de 1963), bilíngue – que traz elucidativa apresentação de Adriane da Silva Duarte –, o relato em português nos deixa muito confortáveis; não causa estranhamentos, a não ser pelo conteúdo referente a um contexto distante, aproximado de nós pela opção naturalizadora da tradução, que flui sem obstáculos ao leitor. Leia-se um trecho do início do romance, em que o narrador Lúcio refere-se ao relato que fará, mencionando sua origem grega e o posterior aprendizado do latim, e suplica o perdão caso cometa “algum deslize” em sua nova língua: “Entretanto, o próprio fato de passar de uma para outra linguagem, verdadeiro exercício acrobático, harmoniza-se com o meu estilo. Da Grécia veio esta história. Atenção, leitor: ela vai te alegrar.”  Transformado em asno, Lúcio é muito “maltratado pela sorte”, mas acaba escapando de cada provação, de modo às vezes hilário (e, neste caso, escatológico): “apoderaram-se de mim, amarraram-me a uma argola com uma forte correia, recomeçaram a bater-me, e teriam certamente acabado comigo, se meus intestinos, contraídos pela dor das pancadas, estufados de legumes crus, somo sabeis, e afligidos por uma forte diarreia, não tivessem esguichado um jato de excremento, de maneira que, aspergidos pelo líquido infecto, ou afugentados pelo seu odor repugnante, escapuliram, deixando-me com o lombo quebrado”. A maior das histórias ouvidas pelo asno é a de Eros e Psiquê, na qual se tem um “extraordinário estudo sobre o nascimento da inveja e sua evolução nas almas”. Considerando-a usurpadora de seu nome e sua “rival em beleza”, a deusa Vênus indigna-se com seu filho Cupido – que mantinha relação amorosa com Psiquê –, gritando “com quanta força tinha”: “Para começar, desdenhaste as ordens de tua mãe e tua soberana, o que é pior! E, em lugar de infligir à minha inimiga sofrimentos de um amor ignóbil, tu mesmo, rapazinho, sem respeitar coisa alguma, te uniste a ela, com laços precoces demais, penso que para me impor como nora a minha inimiga”. Ceres e Juno tentam “acalmar a ira violenta de Vênus”: “‘Que crime, senhora’, disseram, ‘cometeu teu filho, para que com ânimo inflexível contraries seus prazeres? A que deus, a que mortal, podes convencer de que tu expandes o desejo entre todas as criaturas, quando na tua própria casa impões aos Amores um amargo constrangimento e fechas a oficina, aberta a todos, do pecado de amar?’”  Como esse, muitos conflitos humanos encontram lugar no texto, que nos alça a uma dimensão intemporal de espelhamento de nossa condição, além de refletir, no dizer de Ruth Guimarães, “como num espelho, o espírito do tempo”. Embora falte, sim, unidade de concepção à obra – um agregado de narrativas nem sempre entrosadas com a principal –, o “seu modo de contar histórias é uma delícia”, comenta Ruth. De fato o é, seja pelas novidades constantes, seja pelo modo de dizer de novo o já sabido: “A fidelidade humana é coisa frágil, não há obstáculo para o ouro. O ouro abre até portas de aço”. E, por falar em ouro, tema para qualquer tempo, veja-se esta invenção de adivinhos (do Livro IX), que servia de sorte única para qualquer vaticínio; com ela engambelavam clientes, aplicando-a a todos os casos – “juntaram, desta maneira, somas não desprezíveis”: “Os bois colocados sob jugo, se escavam o sulco, / é para que um dia germine a rica messe.” Experimente, leitor, fazer uma pergunta ao oráculo e interpretar a resposta conforme o tema em questão. Um romance mágico, esse.  Passemos à obra traduzida cuja linguagem não deixa tão descansado o leitor, mas também pode, de outro modo, deleitá-lo. Públio Terêncio Afro (século 2 a.C.) foi responsável por inovações na Comédia Nova latina (baseada na grega), entre elas a substituição do resumo do enredo, usado nos prólogos, por comentários sobre a composição e defesas contra acusações que lhe eram feitas, como no prólogo de Os Adelfos: “Depois que o poeta sente que a sua peça / de homens maus foi alvo, e que os adversários / levavam ao pior a peça que ora encenamos, / dará sua defesa, e vós sereis juízes / se o fato ver se deve como vício ou mérito.” Na peça musical-performativa, as falas das personagens se associam a padrões métricos diversos, recriados nesta tradução: “o que aqui se apresenta é uma comédia em português escrita em versos não convencionais, que visam emular o ritmo e a performance da peça latina através de sistemas rítmicos que podem ser levados ao palco”, diz Rodrigo Gonçalves. A estranheza ocasionada pela versificação que adapta padrões antigos não será demasiada, pois o tradutor buscou realizar um “experimento rítmico que, de alguma forma, possibilite a fruição rítmica em performance”. Para Guilherme Gontijo Flores, em sua apresentação ao livro, a tradução oferece mais do que a “chance de riso trans-histórico”, ao assumir “o risco de, mesmo na comédia, evitar a naturalização tradutória da transparência facilitadora” por meio de um português atual “que ecoa e se desvia ao latim”.  Eis alguns versos (jâmbicos) de fala de Micião, um dos dois irmãos – o outro é Dêmea – cujos modos opostos adotados para a educação de dois adolescentes promovem o embate que é o fulcro da peça: “Assim é meu pensar e assim conduzo o espírito: / Aquele que só faz o seu ofício coagido, / enquanto crê que vai ser descoberto, teme; / se espera não ser pego, logo volta ao ímpeto. / Aquele a quem o benefício trazes, voluntário / esforça-se em ser justo, estejas lá ou não. / Assim, dever do pai é acostumar o filho / a agir corretamente por vontade, e não por medo: / é isso que distingue o pai e o senhor.”  Se o rico homem urbano Micião propõe que o jovem Ésquino aprenda com os próprios erros, o pobre agricultor Dêmea educa Ctêsifo de modo severo, impondo-lhe duras regras de conduta: “Por fim, se deve ver o exemplo, não vê ele / o irmão cuidar das coisas lá no campo, parco e sóbrio? / E em nada é parecido. E o que digo dele / de ti digo também: que o deixas corromper”. Dêmea referia-se a atos de Ésquino, que invadira uma casa para obter o que queria – “A moça que amava, / raptou: e todos clamam que é indigníssimo / o feito dele.” No entanto, também Ctêsifo se torna um amante inveterado: rouba uma prostituta tocadora de cítara, com ajuda do irmão (ambos são filhos de Dêmea, que deu um deles a Micião, para que o criasse) e interferência direta do “mestre dos enganos” da comédia, o “escravo sagaz” Siro, que colaborava com ambos para suas aventuras. Como observa Rodrigo, “nenhum dos dois métodos educacionais impediu o destino inexorável de todo jovem de comédia: tornar-se um adulescens tristis (jovem infeliz), arrebatado por alguma paixão que gera grandes dificuldades até ser resolvido ao fim”.  Um diálogo sobre o destino da citarista ilustra as divergentes posições dos pais, que pouco interfeririam na atitude dos filhos: “DÊ: Então, / o feito te agrada? // MI: Não, se eu pudesse / mudar. Mas como isso não posso, a alma sossego. / Assim é a vida humana, como quando jogas dados: / se aquilo que é mais necessário não caiu no lance, / aquilo que caiu corrijas com engenho e arte. // DÊ: Ó corretor! Por causa de tua arte, vinte minas / morreram pela citarista. Assim que se puder / devemos revendê-la, qualquer preço, até de graça. // MI: Pois nem vender devemos nem mesmo pretendo. // DÊ: O que farás? // MI: Em casa ficará. // DÊ: Por deus! /Matrona de família e prostituta em casa, juntas? // MI: E por que não? // DÊ: Tu bates bem? // MI: Claro que sim.” O aspecto mais significativo da peça é a “ambiguidade moral cômica” que nela prevalece ao final: o desagradável e autoritário Dêmea, que, vencido, teria se tornado liberal, vale-se do modo de ser e pensar do irmão para ser amado por todos, vingando-se por meio de ações aparentemente benévolas que levam Micião à miséria...  “Como educar um jovem?” é uma questão que transcende a circunstância e permanece como inquietação nossa. Para Brunno Vieira, autor do texto de orelha do volume, “este potente livro renovará seus argumentos em favor de uma educação que busque a liberdade de poder desafiar tudo o que antes era silenciado, seja na forma, seja nos seus múltiplos sentidos”.

O ASNO DE OURO (ASINUS AUREUS) Autor: Apuleio Tradução: Ruth Guimarães Editora: 34 480 páginas R$ 88

OS ADELFOS Autor: Terêncio Tradução: Rodrigo Tadeu Gonçalves Editora: Autêntica 176 páginas R$ 54,90

*MARCELO TÁPIA É DOUTOR EM TEORIA LITERÁRIA PELA USP COM PÓS-DOUTORADO EM LETRAS CLÁSSICAS, TRADUTOR, POETA E AUTOR DE ‘REFUSÕES – POESIA 2017-1982’ (PERSPECTIVA)

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.