Como a abóbada de Brunelleschi em Florença mudou a humanidade

Arquitetura da cúpula da Catedral de Santa Maria Del Fiore foi um prelúdio do Renascimento

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Por Edison Veiga
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FLORENÇA, ITÁLIA - Duzentos florins era um bom dinheiro na Florença de 600 anos atrás. O que ninguém da Opera del Duomo – a empresa incumbida da construção da Catedral de Santa Maria Del Fiore – imaginava era que o concurso então anunciado com esse prêmio iria mudar para sempre a história da humanidade.

Vista panorâmica de Florença destaca o Duomo da Catedral Santa Maria del Fiore Foto:

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Não é exagero dizer que naquele 19 de agosto de 1418 começava, de fato, o Renascimento – após, é claro, pelo menos cem anos de uma sociedade organizada de tal forma que tudo conspirava a favor e se tornava terreno fertilíssimo para as manifestações culturais, artísticas e arquitetônicas que fizeram o movimento ser a base do saber humano contemporâneo.

O Domo de Florença, hoje ponto obrigatório de hordas de turistas, começou a ser erguido em 1296. Foi projetado pelo arquiteto e escultor Arnolfo di Lapo, mais conhecido como Arnolfo di Cambio, um sujeito que provavelmente viveu entre 1240 e 1302 – há controvérsias sobre as datas tanto de seu nascimento quanto de sua morte. 

Como costumava ocorrer com obras de tal vulto e, para sermos sinceros, ainda acontecem hoje de forma um tanto semelhante, não foi trabalho para apenas uma gestão. Di Cambio morreu, o Duomo não se fez. Giotto di Bondone (1267-1337) – sim, o célebre pintor – o sucedeu na maestria da obra. E o Duomo não se fez por completo. Os trabalhos ainda seriam chefiados por outros nomes, como os escultores e arquitetos Andrea Pisano (1290-1349) e Francesco Talenti (1305-1369). 

Entretanto, o que persistia era um problema visível a quem cruzasse o canteiro de obras naquela Florença que já tinha 50 mil habitantes e se apresentava como uma das mais prósperas cidades da Europa. Ou invisível, já que não havia. Faltava a cúpula da igreja. Era uma lacuna complexa deixada por Arnolfo di Cambio, de modo que as proporções apresentadas no projeto pareciam não conceber qualquer possibilidade de que uma monumental cúpula, como em toda catedral que se prezasse, ali recobrisse aquele templo. Fizesse as honras de uma igreja destinada não tão somente às orações como também à ostentação, um recado de Florença ao mundo de que ali estaria o centro – econômico, político, artístico e cultural – do planeta. 

De modo que quando topou com o anúncio do concurso, o ourives e fabricante de relógios Filippo Brunelleschi (1377-1446) – ou Filippo di ser Brunellesco Lapi ou simplesmente Pippo, como todos o conheciam – já tinha lá suas ideias sobre o problema que parecia insolúvel. Conforme conta Ross King no livro O Duomo de Brunelleschi – Como Um Gênio da Renascença Reinventou a Arquitetura, Pippo esboçava um engenho para a cúpula havia pelo menos uns 15 anos. 

“Quem quiser propor qualquer modelo ou desenho para a abóbada da catedral principal em construção pela Opera del Duomo (...) deve fazê-lo antes do final do mês de setembro. Se o projeto for utilizado, ele terá direito a um pagamento de 200 florins de ouro”, dizia o anúncio publicado em Florença naquele 19 de agosto.

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Pippo tinha 41 anos. Vivia em um bairro de Florença a oeste da catedral, em uma grande casa herdada do seu pai, Ser Brunellesco di Lippo Lapi, que havia sido um próspero notário, de acordo com pesquisa de King. Duzentos florins de ouro era um valor muito bom – equivalente ao ganho de dois anos de trabalho de alguém como Pippo. 

O problema que se apresentava era como sustentar a enorme cúpula octogonal presente no projeto original. O suporte convencional da época – erguê-la a partir de armações de madeira – não seria capaz de dar segurança ao vão interno de cerca de 45 metros de diâmetro. 

Pippo agiu tal e qual um arquiteto moderno: foi o primeiro a não mais reproduzir mecanicamente a técnica, mas sim se apossar dos conhecimentos e dos contextos para praticar uma arte intelectual, resultado de matemática, geometria e história. Propôs uma cúpula construída sem qualquer armação de madeira, mas sim sustentada por meio de uma série de anéis concêntricos em arenito, reforçados com correntes de ferro. Para manter os tijolos seguros – até hoje, trata-se da maior cúpula feita de tijolos do mundo –, ele os fez assentar em ziguezague. Não existia nenhum tipo de escoramento. 

Além disso, desenhou-a em duas partes. A primeira é uma abóbada interna, com 2 metros de espessura na base e 1,5 metro no topo. Esta, depois decorada ricamente com afrescos de Federico Zuccari (1539-1609) e Giorgio Vasari (1511-1574), é a que se vê no interior da catedral. A majestosa e proeminente cúpula externa, hoje incorporada à própria paisagem florentina, é a que salta aos olhos pelos peculiares tijolos, pela forma octogonal, pelo diâmetro de 55 metros e pelos quase 90 metros de altura. 

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Entre ambas, um espaço aberto à visitação pública esconde os segredos de Pippo. Uma escadaria curva dá acesso a essas vísceras arquitetônicas, com 24 nervuras de arenito que servem de sustentação para a obra monumental. 

Toda essa engenhosidade carece de documentação. Pippo deixou poucos registros, provavelmente pelo temor de ter suas técnicas copiadas. Suas soluções foram descobertas depois de pesquisas, justamente da análise dos preciosos vestígios da construção. 

Vencido o certame, as obras da cúpula começaram em 1420 e foram concluídas 16 anos depois. Amigo e aprendiz de Pippo, Donatello (1386-1466) certamente o aplaudiu. Enquanto esculpia seu Davi, Michelangelo (1475-1564) deve ter admirado muito o engenho do ilustre arquiteto. E não teria essa incrível obra influenciado as inspirações e aspirações do então adolescente Leonardo da Vinci (1452-1519), quando ele se mudou para Florença com sua família, muito antes de se tornar o supremo gênio da humanidade? 

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Pippo entrou para a história não como relojoeiro, mas como arquiteto, engenheiro, escultor e matemático. Entrou para a história não simplesmente por ter resolvido o enigma da cúpula do Duomo de Florença. Mas porque, ao lançar mão de uma novidade arquitetônica ousada e sem precedentes, mostrou para a sociedade que não havia – e talvez ainda não haja – limites nem para a arte e nem para o engenho humanos. 

E então o Renascimento conseguiu se fazer. *Edison Veiga é jornalista e escritor. Vive na Itália. 

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