Asimov, Vonnegut: Veja como a ficção científica ficou cada vez mais popular

Mais do que uma simples reação do presente, o gênero revelou escritores como Alfred Bester, Isaac Asimov e Kurt Vonnegut

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Por Michael Dirda
Atualização:

Uma semana antes do Natal, passei uma tarde feliz na 79ª Convenção Mundial de Ficção Científica, conhecida como DisCon III. Mesmo que nos últimos anos a SF – prefiro o acrônimo clássico ao sci-fi, hoje muito mais comum e meio juvenil – venha se envolvendo em guerras culturais, a programação do evento de 2021 foi suficientemente variada para que qualquer fã novo ou antigo pudesse encontrar palestras e painéis de interesse. Os rigorosos protocolos de covid não prejudicaram o entusiasmo dos participantes mascarados e vacinados que lotaram o Omni Shoreham Hotel, em Washington. A escritora Nancy Kress e o artista John Harris foram convidados de honra, o gênero fantasia africana esteve no centro do palco, o Hugo de melhor romance de 2021 foi para o Network Effect, de Martha Wells, e a cidade de Chengdu, na China, após uma campanha vigorosa, venceu a candidatura para sediar a Worldcon de 2023.

Observe que é 2023. Antes disso, escritores, artistas e leitores vão se encontrar neste outono para a Chicon 8, sucessora da Chicago Worldcon de 1940. A dupla de pai e filho David e Daniel Ritter dedica o último volume de The Visual History of Science Fiction Fandom (publicado pela First Fandom Experience) ao planejamento, atividades e consequências desse encontro, que estabeleceu firmemente as Worldcons como uma festa móvel. (A primeira Convenção Mundial de Ficção Científica foi realizada em Nova York no ano de 1939; em 2020, a Nova Zelândia se tornou o lar das festividades daquele ano, embora a covid tenha exigido que fossem totalmente virtuais). Em 1940, dois jovens ousados de Denver pegaram trens de carga para chegar àquela primeira Chicon: Forrest J. Ackerman – um fã de Los Angeles que logo emergiria como o colecionador mais famoso da região – vestido como Ming the Merciless, dos quadrinhos do Flash Gordon (fantasia ou cosplay, não tem novidade) e E.E. “Doc” Smith, autor do seriado de 1928 ‘The Skylark of Space’, apareceu como convidado de honra. O total de participantes chegou a 128; as Woldcons mais recentes medem o público aos milhares.

Timothée Chalamet e Rebecca Ferguson em cena de 'Duna', de Denis Villeneuve Foto: Chia Bella James/Warner Bros

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Os Ritter dedicam esse volume rico em documentos (também disponível na versão digital) a Erle M. Korshak, que na adolescência ajudou a organizar a primeira Chicon. Até pouco antes de sua morte, em agosto do ano passado, aos 97 anos, Erle contribuía regularmente para discussões online sobre aqueles distantes primórdios do fandom.

SF moderna geralmente data suas origens em 1926, quando Hugo Gernsback fundou a Amazing Stories. O primeiro volume de Futures Past: A Visual History of Science Fiction, de Jim Emerson (www.sfhistory.net) fornece um monte de material daquele ano, começando com o conteúdo – e a arte da capa – de cada edição de Amazing Stories. Também traz listas de livros, filmes e peças de ficção científica de 1926, com resumos e ilustrações de enredo, juntamente com ensaios de Mike Ashley e Ben Webster. No Volume 2, intitulado Dawn of the SF Blockbuster, Emerson se concentra em filmes do cinema mudo, dedicando quarenta páginas fascinantes à criação, recepção e restauração da obra-prima distópica de Fritz Lang, ‘Metropolis’, de 1927.

Os anos 1920 e 1930 também foram o auge da Weird Tales. De todos os colaboradores dessa “revista extraordinária”, o mais célebre continua sendo Howard Phillips Lovecraft, que morreu aos 46 anos em 1937, achando que seria esquecido rapidamente. Mas os admiradores de suas histórias – minha favorita é “O Chamado de Cthulhu” – não deixariam isso acontecer.

Ninguém sabe mais sobre esse autor hoje icônico do que S.T. Joshi. Em seu último estudo, The Recognition of H.P. Lovecraft (Hippocampus Press), ele narra, nas palavras do subtítulo do livro, sua “a ascensão da obscuridade até a fama mundial”. Como sempre, Joshi escreve com clareza e propriedade, sem nunca hesitar em corrigir aqueles de quem discorda.

Joshi rastreia rapidamente as contribuições de Lovecraft para publicações da imprensa amadora, seus sucessos e fracassos com editores de revistas, as maquinações de August Derleth para publicar a enorme coleção póstuma de 1939 The Outsider and Others e a surpreendente enxurrada de reedições, críticas e edições acadêmicas de sua ficção completa, ensaios e correspondências depois da Segunda Guerra Mundial. Você sabia que Anthony Powell, autor do proustiano A Dance to the Music of Time, revisou a primeira edição britânica de The Case of Charles Dexter Ward? Embora os pontos de vista de Lovecraft sobre raça, classe e etnia possam ser ofensivos, Joshi ressalta que sua obra continua sendo vastamente traduzida e popular em países não europeus ao redor do mundo.

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No jargão da ficção científica, sercon denota críticas sérias e construtivas. A última edição do zine de alta qualidade de William M. Breiding, Portable Storage Six, tem como subtítulo “A grande polêmica da sercon, Primeira Parte” e cumpre essa promessa. O volume apresenta o ensaio de Fred Lerner sobre judeus na ficção científica; uma leitura de Jon Sommer sobre Earth Abides, de 1949, a visão de George R. Stewart da vida após uma praga mundial; uma resenha de Paul Di Filippo sobre três obras radicalmente transgressoras de Samuel R. Delany; e o mergulho de Cheryl Cline no seriado de E.E. “Doc” Smith, ‘Spacehounds of IPC’, de 1931. Não menos importante, Alec Nevala-Lee relata sua descoberta de “Frozen Hell”, o texto original sem cortes para o que viria a se tornar Who Goes There?, de John W. Campbell. Essa novela de 1938 talvez seja familiar para os cinéfilos como inspiração para ‘The Thing from Another World’ (1951) – que se encerra com a frase assustadora “Continue de olho no céu!” – e também para o ainda mais assustador ‘O Enigma de Outro Mundo’, de John Carpenter (1982).

A ficção científica se tornou cada vez mais experimental, ousada e literária durante as décadas de 1960, 70 e 80, justamente o período coberto pelo livro de memórias de vários volumes de Charles Platt, An Accidental Life (publicação independente). No quarto volume, Platt relembra seus erros como romancista, várias desventuras com mulheres, seu fascínio pelos primórdios da computação pessoal e algumas de suas pegadinhas polêmicas, muitas vezes realizadas em seu fanzine, The Patchin Review. O controverso Platt, que é meu amigo, talvez seja a figura mais polarizadora da ficção científica americana do final do século 20 – com a possível exceção de seu arqui-inimigo, o falecido Harlan Ellison – mas, quando você começa a ler An Accidental Life, você não consegue parar. É tão divertido e informativo quanto os dois volumes Dream Makers (1980, 1983), no qual ele escreve sobre os principais escritores de ficção científica de meados do século, de Isaac Asimov e Alfred Bester a James Tiptree Jr. (Alice Sheldon) e Kurt Vonnegut.

Mas agora já falei bastante. Como esses livros nos lembram, a ficção científica não apenas reage ao presente e imagina o futuro, mas também pode aprender muito com seu passado complexo e fantasticamente agitado. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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