Como a fotografia se tornou um instrumento de resistência no Mali

'É nosso dever criar algo belo todos os dias', diz o fotógrafo Seydou Camara, que organiza expedições fotográficas e um festival de arte na capital Bamako

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Por Redação
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Uma vez por semana, Seydou Camara conduz dezenas de estudantes de fotografia por Bamako, a capital do Mali. A maioria deles não possui equipamentos próprios, mas isso não os desencoraja. Eles andam pelas ruas queimadas pelo sol, passam por inúmeras motos, vendedores de legumes e de tecidos, usando câmeras antigas enquanto caminham. “Quero ensiná-los a contar as histórias da cidade”, diz Camara.

Fotografia clicada por Seydou Camara no Mali Foto: Seydou Camara/MSF

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Como vastas áreas do país são atormentadas por homens com armas e facões, as aulas livres de Camara se tornaram um pequeno ato de resistência. O esguio fotógrafo de rua está determinado a semear os frutos de uma nova geração de artistas que poderão prosperar quando o conflito parar. “Acredito que seja nosso dever criar algo belo todos os dias”, diz ele.

A história cultural de seu país é extraordinariamente rica. Nos tempos medievais, a civilização da África Ocidental floresceu em território ao longo das margens do rio Níger, no que se tornaria o Mali moderno. No século 13, enquanto a Europa queimava hereges, os livros eram um símbolo de status no império do Mali. Estudiosos e nobres coletaram milhares de manuscritos e transformaram as cidades de Timbuktu, Gao e Djenné em repositórios do conhecimento do mundo.

Desde a independência da França em 1960, Bamako – que significa “rio dos crocodilos” na língua local de Bambara – passou por um novo renascimento. A sua posição na encruzilhada entre a árida região do Sahel e o luxuoso Golfo da Guiné tornou-o um caldeirão para artistas e músicos de todo o oeste da África.

Artistas lendários surgiram da cidade. No final do século 20, Ali Farka Touré e Toumani Diabaté consolidaram o status de Bamako como uma potência musical com seus blues do deserto. Malick Sidibé e Adama Kouyaté foram pioneiros na fotografia africana, capturando a exuberância de uma geração arrancando os grilhões do colonialismo.

Hoje, o cenário cultural da cidade está sob ameaça. Em 2012, rebeldes e jihadistas saíram do Saara e capturaram a metade norte do país. Os militantes impuseram uma ideologia extremista wahhabi, saquearam bibliotecas e danificaram as antigas mesquitas de tijolos de barro de Timbuktu. Em 2013, depois que os homens armados começaram a avançar sobre Bamako, milhares de soldados franceses e do Chade intervieram e os levaram de volta ao deserto. Nos sete últimos anos, os jihadistas se reagruparam e colocaram diferentes grupos étnicos uns contra os outros. Ataques e pogroms étnicos se espalharam mais uma vez do norte remoto até algumas centenas de quilômetros da capital.

Além de um punhado de incidentes, a própria capital Bamako até agora tem passado incólume pela violência. A menos que as forças armadas do Mali se desintegrem, ou que os contingentes franceses e das Nações Unidas ainda estacionados no país sejam retirados, ela permanecerá segura em futuro próximo. Fisicamente seguro, pelo menos; o conflito já teve um impacto devastador na vida artística da cidade. Tome-se Camara como exemplo. Dez anos atrás, seu futuro parecia brilhante. Uma série de fotos que ele tirou da vida da população albina de seu país recebeu elogios internacionais. Colecionadores e jornais estrangeiros estavam interessados em seus retratos íntimos da vida urbana.

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Recentemente, turistas – e compradores – tornaram-se escassos; os negociantes de arte africana tendem a evitar Bamako em favor de Lagos, Nairobi ou Dacar. Camara e muitos de seus colegas têm dificuldades para sobreviver. “Tudo ficou muito difícil para nós”, relatou Kadia Sogobo, fotógrafa de 24 anos. “Nossa herança e nossa cultura estão ameaçadas.” Mercedes Vilardell, que adquire arte africana para a Tate Modern em Londres, diz que os artistas do Mali não têm os mesmos recursos que os sul-africanos ou nigerianos para anunciar seus trabalhos internacionalmente. Como “as pessoas agora estão com muito medo de vir aqui”, lamentou ela, “eles simplesmente não são vistos”.

Apesar de toda a agitação, a vida continua em Bamako. Os bares da rua ainda ressoam os ritmos do rock tuaregue, da rumba congolesa e os afrobeats da Nigéria. Os habitantes locais se gabam de que, além de Lagos, sua cidade tem a melhor vida noturna do continente. O governo sitiado fez uma declaração política simplesmente que continua tudo normal. Em dezembro de 2019, supervisionou a abertura do Bamako Encounters, um festival de fotografia semestral que se tornou um dos maiores da África. Fotógrafos e artistas vieram de todo o continente para contar histórias africanas em dezenas de pequenas galerias. Os visitantes regulares acharam que havia menos pessoas presentes do que no passado, mas, como o evento já havia sido cancelado por causa de temores sobre a segurança, organizar o evento era uma demonstração de desafio. Na abertura, os palestrantes falaram sobre a necessidade de combater o terror com cultura e beleza.

Para Camara, o festival é particularmente importante. Seu trabalho foi notado aqui pela primeira vez em 2009 e ele sabe quão valiosa a mostra que ele apresenta pode ser para seus alunos. Sem essa atenção, ele teme que a imagem do Mali seja cada vez mais definida não pelo seu povo, mas pelos jornalistas ocidentais que chegaram para reportar sobre o derramamento de sangue. “Tudo o que enxergam é a nossa miséria”, afirma ele. “Eles não veem nossa felicidade. Ninguém pode nos retratar melhor do que nós mesmos”.

Ele não pode viajar pelo país como antes. No entanto, para ele, a própria cidade de Bamako está cheia de histórias e significados ocultos. Ele diz que as falésias que cercam a cidade têm um significado metafórico que ajuda a definir seus habitantes. “De um lado, estão os penhascos do poder”, diz ele, apontando para o palácio no topo da colina do presidente. “No outro, estão os penhascos do conhecimento, onde fica a universidade. No meio, o povo do Níger dá as boas-vindas a todos.”/ TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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