A violência policial provoca a ‘rebelião' negra

É o que defende o livro 'America on Fire',de Elizabeth Hinton, lançado pela Liverlight

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Por Ronald S. Sullivan Jr.
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Um antigo provérbio africano alerta, “Até que o leão conte sua versão da história, o relato da caça sempre glorificará o caçador”. Em America on Fire: The Untold History of Police Violence and Black Rebellion Since the 1960s (EUA em Chamas: a História não Contada da Violência Policial e da Rebelião Negra desde os Anos 1960), Elizabeth Hinton desmente um relato a respeito de policiamento e violência nos Estados Unidos aceito popularmente e impreciso historicamente.

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Ao longo da maior parte da história americana, a narrativa convencional relatou autoridades policiais reagindo à violência generalizada na sociedade, que precisava ser combatida com uma “guerra contra o crime”. Essa perspectiva proveu justificativas avançadas para o uso de força por parte da polícia e estabeleceu as condições para uma política econômica que suplanta políticas de governo sensatas por meio de slogans vazios. Elizabeth aponta que uma dessas máximas, “lei e ordem”, atua como um talismã que imuniza policiais e políticos de serem responsabilizados em relação à sua falha em abordar a miríade de problemas sociais que afetam cidadãos de cor de maneira desproporcional. A realidade, argumenta Elizabeth, é que comunidades negras respondem à violência policial há décadas com atos de rebeldia.

É esta a história que Elizabeth conta com precisão histórica e rigor analítico.

Passeata do movimento Black Livres Matter contra a morte de Geerge Floyd Foto: The Washington Post

O mais controvertido trecho de EUA em Chamas é provavelmente a decisão incontrita de Elizabeth de se referir a atos de violência urbana como “rebeliões” negras, em vez de “distúrbios" ou algum termo neutro. Essa distinção tem consequências profundas. O número absoluto de rebeliões negras - de Los Angeles a Gary, Indiana, e no sul do país - que constitui os dados de Elizabeth será espantoso para a maioria das pessoas, já que as ações foram em grande parte omitidas pelos principais meios de comunicação. Além disso, Elizabeth refere-se a essas rebeliões com um evidente tom justificatório. A díspar incidência de violência policial, frequentemente com a concordância (ou a cooperação afirmativa) do Estado, é responsável por instabilidades sociais no nosso passado e no nosso presente. Aqui, a reivindicação temporal de Elizabeth tem de ser estabelecida como um forte contraste: subvertendo a narrativa convencional, ela argumenta que rebeliões negras sempre se seguem a atos de violência policial, e não ao contrário; que rebeliões – mesmo rebeliões violentas – são respostas à violência policial e não as causas do reforço de policiamento em comunidades negras. Muitos se indignarão com essa alegação, mas ninguém poderá discordar da história que Elizabeth detalha para sustentar sua tese.

Um exemplo ilustra como mesmo agressões menores, mas injustificadas, da polícia podem levar a protestos. Elizabeth reconta um episódio de 1968, em que adolescentes que moravam em um projeto de habitação popular em Stockton, Califórnia, faziam uma festa. Dois policiais brancos apareceram para pôr fim à reunião. Sentindo-se em desvantagem em razão da quantidade de gente no local, eles pediram reforço. Outros 40 policiais chegaram, ordenando que os cidadãos se dispersassem, afirmando que eles estavam reunidos ilegalmente – em seu próprio espaço. A intervenção desnecessária da polícia transformou “uma festa em um protesto”.

Outro exemplo envolve violência física e morte. Elizabeth conta a história de um policial de Alexandria, Virgínia, que tinha um longo histórico de espancar adolescentes negros e insistia em se referir a eles como “crioulos”, apesar de seus protestos. Esse policial nunca foi disciplinado pela corporação; em vez disso, era constantemente elogiado. As ações dele e de outras assim chamadas “maçãs podres” da polícia aterrorizaram comunidades negras por anos. Cidadãos negros reclamaram por todos os canais apropriados e organizaram pequenos protestos, mas sem nenhum resultado. Quando um dono de loja matou com um tiro um adolescente negro, em 1970, e a polícia falhou em investigar apropriadamente o caso, caiu “a gota d’água”: a rebelião violenta ocorreu quando os cidadãos perceberam que o problema ia além de algumas poucas maçãs podres. Em vez disso, a árvore inteira estava apodrecida.

O livro é um chamado à realidade, particularmente ao longo de três registros. Primeiro, apesar de Elizabeth contar uma convincente história a respeito da reposta dos negros à violência policial, ela nota que atualmente são necessários atos de “extraordinária” violência policial para desencadear as formas de rebelião vistas ao longo de toda a história do país.

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O recente julgamento do ex-policial de Minneapolis Derek Chauvin pelo assassinato de George Floyd corrobora este ponto. Foram necessários o vídeo de nove minutos, o testemunho de um chefe de polícia, uma equipe de promotores de primeira linha e a destruição geralmente sem precedentes de um “muro de silêncio” para garantir a condenação. Enquanto isso, a violência e as injúrias diárias a que pessoas negras são submetidas diariamente quando esbarram com a polícia permanecem sem resolução. Nesse sentido, Elizabeth argumenta que o status quo venceu. A violência habitual da polícia se normalizou, se banalizou. Passamos a reagir somente às suas expressões mais brutais.

A segunda tese apresentada pelo livro trata de políticas públicas, e Elizabeth aponta uma cruel ironia: a típica resposta para atos de rebelião é mais policiamento. Mais policiamento ocasiona mais violência policial. Mais violência policial ocasiona mais atos de rebelião. Esse ciclo é “na melhor das hipóteses, contraproducente; e na pior, gravemente nocivo”. Mais policiamento, segundo Elizabeth, deveria estar em último lugar na lista de recomendações de políticas, já que incentiva a própria circunstância que deveria evitar. Uma abordagem melhor seria financiar programas que tiram as pessoas da miséria, proveem oportunidades educacionais e libertam as pessoas de outras travas sociais que beneficiam a hierarquização racial nos EUA.

Neste sentido, Elizabeth está em sintonia com o jurista Devon Carbado, da UCLA, que tem argumentado que interpretações em juízo da Quarta Emenda permitem que policiais “forcem interações com americanos negros com pouca ou nenhuma base”. Esses encontros “frontais”, argumenta ele, levam a uma violência “de retaguarda”. Quando mais encorajarmos interações indesejáveis e imerecidas entre a polícia e americanos negros, principalmente em comunidades menos privilegiadas, mais flertaremos com o crescimento de injúrias e mortes nessas comunidades. E se a história serve como guia, rebeliões se seguirão.

O livro também força o leitor a confrontar limites e fracassos do movimento por direitos civis. Seus métodos e impactos se provaram insuficientes para ocasionar o tipo de transformação estrutural necessária para a equidade racial. Rebeliões ou “insurgências continuadas” sempre foram relegadas ao segundo plano, retiradas dos nossos livros de história, mas lembram ao país que a força hidráulica gerada por vozes não escutadas e promessas não cumpridas sempre encontra um veículo de expressão. Disso decorre a longa e ininterrupta história da rebelião negra.

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Desde Estarão as Prisões Obsoletas?, livro de 2003 de Angela Davis, nenhum esforço intelectual havia desafiado de maneira tão persuasiva nosso entendimento convencional do sistema de Justiça criminal. Elizabeth claramente não se considera engajada em um mero exercício acadêmico para “reestruturar" narrativas ou “recaracterizar" normas. O trabalho dela tem uma importância muito maior. Em EUA em Chamas, ela oferece uma vívida descrição de eventos históricos. E faz um relato – como seu subtítulo sugere – de uma história “não contada”. Elizabeth conta essa história com clareza, e suas conclusões servem como alerta para os elaboradores de políticas públicas. Elizabeth traça o curso para a superação das rebeliões. A dúvida, porém, é se os EUA têm vontade política para isso./ Tradução de Augusto Calil

* Ronald S. Sullivan Jr. é ex-diretor do Serviço de Defensores Públicos de Washington DC e professor da Faculdade de Direito de Harvard, onde atua como diretor acadêmico do Instituto de Justiça Criminal e da Oficina de Advocacia em Julgamentos.

America on Fire: The Untold History of Police Violence and Black Rebellion Since the 1960s 

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Autora: Elizabeth Hinton Editora Liveright. 408 páginas. US$ 29,95

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