Como Duchamp se tornou o artista mais influente da era moderna

Exposição em Washington celebra a obra do inventor da arte conceitual

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Por Philip Kennicott
Atualização:

WASHINGTON - Em meados do século passado, estudiosos, críticos e amantes da arte perceberam que nem todas as fontes da arte moderna vinham de Picasso. Igual influência tinham as ideias e obras de Marcel Duchamp, o artista francês que deu mais importância à ideia que aos objetos materiais e inventou o que agora chamamos de arte conceitual.

Marcel Duchamp retratado por Henri Cartier-Bresson Foto: Henri Cartier-Bresson

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Hoje, a maioria dos críticos provavelmente colocaria Duchamp acima de Picasso como a grande figura da arte contemporânea. Ou, como Francis M. Naumann escreve no principal ensaio do catálogo da nova exposição de Duchamp no Museu Hirshhorn e no Sculpture Garden: “Marcel Duchamp é o artista mais influente da era moderna”.

 

Duchamp não foi apenas o inventor da arte conceitual, mas também o espírito animador da arte pop, da assemblage e de gestos como o détournement da década de 1950 (o reaproveitamento subversivo de imagens populares). Ele foi o modelo ético da vanguarda da moda e deu aos artistas permissão para se deleitar com alter egos, humor irônico e jogos de palavras, além de demonstrar uma aversão ostensiva ao “jogar o jogo” – que todo artista, no entanto, tem de jogar para ganhar a vida.

 

Todas essas lições básicas sobre o artista são manifestas em

Marcel Duchamp: The Barbara and Aaron Levine Collection

, que apresenta mais de 50 obras de Duchamp ou relacionadas a ele.

 

Os Levine são uma presença familiar na cena artística de Washington e têm sido generosos em permitir que os visitantes explorem sua casa na capital, que se tornou um importante santuário para o artista. Aaron Levine é um advogado de destaque e Barbara Levine trabalhou como curadora da Hirshhorn. Agora, o público pode ver sua coleção, em um programa que aborda todos os episódios significativos da carreira magicamente rebelde de Duchamp, passando até mesmo por longos períodos de aparente distância do mundo da arte, entre os quais os anos em que ele se dedicou sobretudo ao xadrez, em nível profissional.

 

A mostra conta com um esboço a tinta de 1909 que demonstra o talento de Duchamp para a caricatura; trabalhos relacionados à sua inescrutável obra-prima “A noiva despida por seus celibatários, mesmo”; uma edição de 1964 de

Porta-Chapéus

, um de seus mais famosos ready-mades; diferentes versões de sua

Mona Lisa

de bigode (entre elas, uma “barbeada”); e esboços, livros, capas de livros e outros materiais que documentam seu envolvimento com o surrealismo, os jogos de azar e o xadrez.

 

Em uma entrevista no catálogo da exposição, Barbara Levine diz: “Na verdade, odiamos o colecionador esnobe”, e Aaron Levine sugere que eles buscaram obras de Duchamp sem nenhuma estratégia específica. “Eu era como um polvo de vários tentáculos, ia pegando o que conseguia”.

 

Com outros artistas, essa abordagem pode resultar em uma coleção aleatória, cheia de lacunas e negligências. Mas, como o foco de Duchamp estava nas ideias, e não nos objetos, a aquisição de obras é menos essencial. Bastam os estímulos e gatilhos para o pensamento, talismãs que abrem a chance para contemplar os conceitos duchampianos. O próprio Duchamp pareceu reconhecer esse fato em vários trabalhos nos quais criou compêndios meticulosos e idiossincráticos de suas obras Um desses projetos funciona como um museu em miniatura dentro de uma mala, com reproduções de pontos de referência básicos para Duchamp. Outro é uma caixa verde cheia de fac-símiles de suas anotações para

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A Noiva

 (a coleção Levine apresenta os dois).

 

A coleção essencial das obras de Duchamp está no Museu de Arte da Filadélfia, que detém os grandes painéis de vidro quebrados de

A Noiva

 e seu último trabalho importante,

Étant Donnés

, um diorama surreal e erótico visto através do olho mágico de uma velha porta de madeira. Mas a coleção Levine funciona como um breviário dos elementos essenciais da provocação de Duchamp ao mundo da arte, que começou por volta de 1912, quando ele se afastou da pintura tradicional após ser pressionado a refazer ou retirar a tela

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Nu descendo uma escada Nº 2

 de uma importante exposição parisiense. A ofensa, ao que parece, foi o título, pintado diretamente na tela, destoando da imagem, uma representação dinâmica e futurista de uma figura cubista. A lição que Duchamp aprendeu foi a necessidade de independência e uma aversão aos ditames do “gosto”.

 

A partir de então, ele deu início à estratégia que o acompanharia por toda vida: ir contra as ideias fundamentais que governaram a arte ocidental por séculos. Ou seja, contra a crença de que a arte deveria ser original e apelar aos olhos; de que o artista, e não o espectador, é o autor da obra de arte; de que a sensibilidade individual e o toque pessoal do artista eram fundamentais; e de que a arte precisava ser material. Duchamp inventou um alter ego, Rrose Selavy, uma mulher cujo nome era uma brincadeira com as palavras Eros e c’est la vie, ou “é a vida”.

 

Ele também manteve distância do mundo das galerias e da autopromoção tradicional, até que suas ideias ficaram tão famosas e influentes que ele não pôde ou não quis mais se esconder. Duchamp morreu aos 81 anos, em 1968, enquanto o mundo desmoronava. E, embora não possa ser responsabilizado por isso, o fato é que ele guiou sua vida por um ceticismo fundamental diante das ideias consagradas e das estruturas de poder tradicionais, um ceticismo que estava levando as pessoas às ruas em todo o mundo ocidental.

 

Então Duchamp agora é o deus da arte contemporânea e, como as divindades monoteístas, ele se revela apenas raramente e em enigmas. Falava e escrevia hermeticamente, um mau hábito muito emulado por artistas e críticos contemporâneos. No entanto, conseguia explicar seus propósitos com perfeita clareza. Duchamp disse que não estava interessado no puramente visual, ou no que ele chamava de “arte de retina”, mas sim nos objetos que escolhia para seus ready-mades – uma chapeleira, um suporte para secagem de garrafas, uma pá –, com os quais celebrava produtos industriais de extraordinário apelo visual. Ele não ligava para a ideia de obra original, mas era meticuloso ao fazer suas próprias reproduções. Ignorou o marketing tradicional de sua arte, mas se sustentou, em parte, com a venda de um conjunto de esculturas de Constantin Brancusi que havia adquirido.

 

Essas contradições e peculiaridades fazem o charme da pessoa de Duchamp, mas ficam mais problemáticas na religião do duchampismo. O que, de fato, há de errado com a arte de retina? Não é a retina que nos arrasta quando percorremos uma galeria? O trabalho subversivo pode dar uma considerável liberdade criativa, mas poucos artistas podem se dar ao luxo de fazê-lo, e trabalhar em colaboração e em comunhão com os outros também tem seus benefícios.

 

Dizia-se que Duchamp era encantador, espirituoso e muito inteligente. Mas o duchampismo contemporâneo pode ser bem aborrecido. Quando um artista solta intencionalmente platitudes herméticas, você sabe que isso é um reflexo do duchampismo; quando você passa por obras novas em uma galeria contemporânea e se vê simplesmente dando rodopios conceituais desconexos, como resolver acrósticos banais, você sabe que isso é duchampismo degradado.

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E o que dizer da presença de Duchamp em uma grande instituição de Washington? Ela aumentará a capacidade do Hirshhorn de apresentar uma história coerente da arte do século 20 e será uma ferramenta de ensino significativa. Também há algo de delicioso na ideia de ver na capital do país um artista cuja estratégia fundamental era a subversão lúdica.

 

Isso nos permite fazer uma distinção importante. A carreira de Duchamp foi uma série de provocações que miravam ideias sobre arte que nunca haviam sido questionadas. Foi essencialmente socrática, uma arte feita de perguntas que minavam verdades confortáveis e desestabilizavam o interlocutor. E isso não tem nada a ver com ouvir mentiras. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

 

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