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Como Franz Kafka e George Orwell previram problemas do século 21

Como já disse o economista Eric Lonergan, escritores são profetas bem mais confiáveis que economistas

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Circulou dia desses pelo Twitter uma obra de Franz Kafka até então desconhecida. Justificadamente, diga-se, pois Kafka jamais a escreveu; nem poderia tê-la escrito, pois a palavra “Brexit”, título do desconhecido romance, ainda não existia quando ele era vivo. Nem durante os primeiros 90 anos que se seguiram à morte do escritor, em 1924.

Cena do filme '1984', adaptação do romance de George Orwell, mostra tortura com ratos Foto: Lume Filmes

Como então explicar a misteriosa exumação? Simples: um gozador, que já vi identificado como Tim Mitchell (não é o homônimo roqueiro), pegou a capa da mais manjada edição da Penguin de O Castelo, e trocou “The Castle” por “Brexit”. Apenas isso. Escrito em 1922, o romance, abandonado por Kafka e arrematado postumamente por seu testamenteiro, Max Brod, seguindo instruções do autor, foi publicado em 1926.

Montagem coloca a palavra 'Brexit' na capa do livro 'O Castelo', de Franz Kafka Foto: Reprodução

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Mitchell não fez uma pegadinha fortuita. Tem a mesma idade do Brexit a primeira aproximação do movimento pela saída da Inglaterra da União Europeia com a ficção kafkiana. Há dois anos e meio, em seu filosofante blog sobre economia,”Philosophy of Money”, Eric Lonergan não apenas afirmou que os escritores são profetas bem mais confiáveis que os economistas como, ao destacar Kafka nessa especialidade, comparou a lenga-lenga agora realejada pela primeira-ministra britânica Theresa May ao alegórico processo sem fim a que o sr. K, protagonista do romance, é submetido para ser aceito como cidadão e trabalhar no vilarejo controlado do impenetrável castelo.

Só depois de morto o sr. K tem seu pedido atendido pelos anônimos e encastelados burocratas do império austro-húngaroPara Lonergan, o movimento Leave, primeira alcunha do Brexit, “desembocou num interminável processo de tentar sair sem saber se e quando isso acontecerá. Se antes ou depois da morte de muitos dos interessados em sair ou ficar.”

Kafka foi um dos maiores profetas das desgraças do século passado. Anteviu a desumanização de nossa espécie e seu penchant autoritário, a crueldade do poder e a impotência do ser humano, especialmente diante dos demandos da Justiça e da indiferença das máquinas administrativas. Anteviu até Theresa May.

Em artigo publicado no New York Times de 15 de janeiro passado, o escritor e filósofo Tom Whyman foi mais longe e comparou a nova “dama de ferro” britânica ao Odradek, o onipresente e incapturável carretel de linha, achatado e em forma de estrela, do conto Tribulação de um Pai de Família. Filósofos e teóricos culturais interpretaram Odradek de várias maneiras, como um símbolo da culpa mundial, como uma metáfora da alienação da classe trabalhadora sob o regime capitalista. “Hoje, contudo”, escreveu Whyman, “Odradek pode significar apenas uma coisa: Theresa May, a primeira-dama britânica.” Era uma distinção, mas não um elogio.

O Brasil também tem seu lado kafkiano — muitos lados, por sinal. Mas cada vez mais me convenço de que nossa maior referência ou inspiração literária não é Kafka, e sim o inglês George Orwell. Especificamente o Orwell de 1984.

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Quem leu o mais afamado romance distópico do século 20 sabe que, para fazer com seu título o que Tim Mitchell fez com o de O Castelo, bastaria trocar o oito por um seis. E não apenas porque a narrativa de 1984 tem início em abril (“Era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas”), como o golpe militar aqui ocorrido em 1964, que se efetivou no primeiro dia daquele mês, coincidentemente celebrado como a data magna da mentira, ficando a consolidação da ditadura para uma semana depois, quando da edição do primeiro Ato Institucional, que suspendeu a Constituição, suprimiu as liberdades públicas, impôs eleições diretas para presidente, cassou mandatos etc.

Mais 16 Atos foram promulgados nos cinco anos seguintes, sendo o quinto, o famigerado AI-5, de dezembro de 1968, o mais abrangente e abjeto de todos, estímulo e fiança para toda sorte de arbitrariedades e atos de violência oficial, inclusive ou sobretudo torturas e assassinatos de adversários políticos.

Torturas até com a inclusão de ratos, que nem no horripilante Quarto 101 de Oceânia, a imaginária ditadura de 1984, inspirada na Rússia stalinista. Fiquem à vontade para comparar o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, codinome Dr. Tibiriçá, autoconfesso verdugo a serviço do regime militar de 1964, ao O’Brien de 1984.

Da orwelliana Oceânia só não tívemos, praticamente, um Grande Irmão semelhante ao original, um tanto por deficiência tecnológica, outro tanto por desnecessidade, pois nos impunham um novo ditador fardado a cada quatro anos, e a vigilância e a repressão eram repartidas entre esbirros de variada graduação, com coturno ou sapato, de terno ou uniforme.

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Novilíngua, Ministro da Verdade, slogans comparáveis aos da tirania orwelliana, nada disso faltou à ditadura daqui, que durou 21 anos, mas vive ameaçando voltar desde que o atual presidente iniciou sua campanha eleitoral canonizando a sulfúrica figura do coronel Ustra.

Enquanto tal ameaça não se viabiliza, o bolsonarismo no poder vai orwelliando com um ministério especializado em gerar e difundir fake news e deslavadas fraudes históricas, nenhuma tão grave, grosseira e desrespeitosa quanto negar que o país viveu uma ditadura entre 1964 e 1985. Com um ministro da Educação como o importado Vélez Rodríguez, doentiamente empenhado em falsificar a história para transformar nossas crianças em zumbis de uma ideologia espúria, o cenário para a farsa já está montado.

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