Como George Steiner dedicou a vida a transmitir o prazer evocado pela literatura

Ninguém mais soube fazer da leitura uma cerimônia transcendente, invocando a presença real do sentido da vida em cada palavra lida do que esse crítico franco-americano morto nessa semana aos 90 anos

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Por Eduardo Wolf
Atualização:

“A crítica literária deve brotar de uma dívida de amor. De modo evidente, ainda assim misterioso, o poema, ou peça, ou romance capturam nossas imaginações. Quando terminamos a obra, não somos os mesmos que éramos quando a começamos. (...) Grandes obras de arte nos arrebatam como tempestades, escancarando as portas de nossa percepção, pressionando a arquitetura de nossas crenças com seus poderes transformadores.”

É com essa profissão de fé no poder da obra de arte que o crítico George Steiner abre seu primeiro livro, Tolstoi ou Dostoievski, de 1959: uma afirmação inequívoca de que a experiência estética é tão essencial às nossas vidas quanto ter amigos, viver um grande amor ou devotar-se à realização de um sonho – vivências constitutivas e definidoras da condição humana. E é por isso que a atividade do crítico surge do amor pela obra de arte: é um “instinto primário de comunhão” que faz com que queiramos compartilhar a rica experiência de fruir as cores e os volumes de Cézanne, a arquitetura de som e tempo de um quarteto de Beethoven ou a melodia da memória viva na prosa de Proust, um instinto que transforma o crítico em uma espécie de mensageiro da beleza, da grandeza e da vastidão da criação humana.

O crítico literárioGeorge Steiner Foto: NANCY SIESEL/THE NEW YORK TIMESS

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Foi esse amor o motor da vida e da obra de Francis George Steiner, que morreu no último dia 3 de fevereiro, aos 90 anos de idade, em sua casa em Cambridge, na Inglaterra. Ao longo de seus mais de 60 anos de atividade intelectual, com mais de 50 livros publicados – estendendo-se da crítica literária à filosofia, passando pela ficção por inúmeras antologias organizadas –, Steiner tomou para si a tarefa de viver, sentir e transmitir a mensagem das grandes obras da literatura e do pensamento humanos.

Como professor, foi fellow do Churchill College, em Cambridge, e catedrático de Literatura Comparada, em Oxford, disciplina que ministrou por mais de 20 anos na Universidade de Genebra, na Suíça, além de ter sido pesquisador e professor convidado em Harvard, na Sorbonne e em instituições na China e no Japão, entre muitas outras. Como teórico e pensador da literatura e das artes da palavra, escreveu com paixão, verve e sagacidade sobre temas, períodos e autores tão variados quanto a tragédia (A Morte da Tragédia, Antígonas), a filosofia da linguagem e da tradução (Depois de Babel), Marx, Freud e Lévi-Strauss (Nostalgia for the Absolute) e a poesia do pensamento, aproximando pensamento filosófico e forma poética (The Poetry of Thought – from Hellenism to Celan). Como crítico, buscou sempre atingir o maior público possível, nunca se restringindo às atividades estritamente acadêmicas – e seus seminários e conferências estavam sempre lotados de entusiastas –, sendo responsável pela crítica de livros da célebre revista The New Yorker por mais de 30 anos, resenhista titular do Observer (jornal dominical do britânico Guardian), além de muito atuante na rádio e na televisão por décadas, alcançando um impressionante número de leitores, jovens e experientes, fora dos círculos de especialistas e em quatro línguas – inglês, francês, alemão e italiano. 

Sua morte não representa apenas o desaparecimento de uma inteligência rara, de uma erudição a justo título reconhecida por todos como nada menos que monumental. A morte de um intelectual, de um erudito, de um mestre propriamente dito, sempre deverá parecer àqueles que amam o saber e a cultura algo como o incêndio de uma biblioteca toda especial: o desaparecimento de um saber próprio, único, nunca mais acessível ao diálogo, à contradição e à invenção que marcam uma inteligência viva e vibrante. No caso de Steiner, mais que o intelectual e o erudito, desaparece toda uma forma de vida que se torna agora irrepetível: com Steiner, morre a figura do intelectual europeu. 

Nascido em Paris em 1929 de mãe austríaca e pai checo, Steiner cresceu em um ambiente judaico rico, laico, cosmopolita, devotado à cultura e poliglota. O pai, banqueiro, antevendo a tragédia do nazismo, consegue levar a família para os Estados Unidos, onde Steiner prossegue com seus estudos, passando pela Universidade de Chicago e por Harvard, dedicando-se não apenas à Filosofia e às Letras, mas também à Física e à Matemática. De volta à Europa para seu doutorado em Oxford, começa a trabalhar na redação da prestigiosa revista The Economist, cobrindo sobretudo temas de relações internacionais e inaugurando uma relação de colaboração com a imprensa que duraria sua vida inteira. 

Também teve início por essa época sua relação estremecida com o establishment acadêmico tradicional: crítico imaginativo, de pendores artísticos, Steiner enfrentou desde seu doutoramento – que viria a ser publicado com o título A Morte da Tragédia – os formalismos frios e o filistinismo burocrático que podem assolar (e assolam) até mesmo as melhores universidades. Em vez da especialização árida e infrutífera, Steiner buscou realizar desde cedo a paixão da completude: uma obra e um autor não bastam. É preciso, ao menos em desejo, se entregar à totalidade das grandes obras. E é sem dúvida nesse sentido, mais que em qualquer outro, que Steiner era um europeu. Não pelo acidente geográfico, pela loteria do nascimento, mas sim pelo pertencimento a uma linhagem de pensamento, de criação e de recepção que se iniciava entre os gregos e romanos, era levada adiante pela Europa cristã e desembocara na pujança do Renascimento e do Iluminismo, parteiros da modernidade de todo o Ocidente. Apenas a orgânica compreensão dessa tradição confere a alguém a palpável sensação de que o estudo de Dante não pode prescindir da dedicação a Homero e Virgílio; que compreender Dostoievski exige a compreensão das formas trágicas na literatura; que para o verdadeiro entendimento da grande obra de arte faz-se indispensável o minucioso estudo da História, da Filosofia e da Religião. E apenas a tradição europeia – da paideia grega ao homem renascentista; da remota figura do estudioso alexandrino e bizantino ao enciclopedismo iluminista e à figura do homme de lettres, dá vida a essa imagem da cultura ocidental, a despeito de quão frágil ou inverossímil se possa julgá-la. 

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Steiner foi um europeu nesse sentido. Encarnou uma sensibilidade, foi depositário e mensageiro de uma civilização que é, ela própria, a convergência de culturas e línguas, de indivíduos e de obras do pensamento de força e beleza variegadas. Não há dúvidas que retornou de suas possibilidades profissionais nos EUA para viver a Europa, mais do que nela habitar. Estabeleceu-se definitivamente em solo europeu ainda por outra razão: ouviu do pai, já à beira da morte, que se não retornasse ao Velho Mundo, ao continente que havia expulsado a família Steiner daquele solo e dizimado milhões de judeus como eles, então Hitler teria vencido. 

Não haveria como não retornar. Fora seu pai, afinal, que quando o jovem George ainda nem havia completado seis anos de idade, instigara-lhe a paixão por ouvir as aventuras narradas na Ilíada. Fora seu pai que, numa dessas ocasiões, narrara-lhe o confronto de Aquiles com Licaon. Fascinada, a criança aguardava o desenlace daquele terrível encontro quando seu pai subitamente interrompe a história: a tradução estava incompleta! Não havia como saber o que acontecia, a não ser recorrendo ao original grego. A estratégia do pai nos é obvia, e ainda assim, poderosamente tocante: na escrivaninha de seu escritório, uma gramática introdutória aos estudos do grego aguardava o menino. Contornando as letras, aprendendo os sons, seu pai o iniciara com entusiasmo no estudo do idioma de Homero, que Steiner jamais abandonaria. “O resto de minha vida é talvez uma nota de rodapé àquela hora”, lemos nas suas memórias, Errata.

Foi para reviver a emoção intensa e a elevação sublime daquela hora que ele fez de sua vida uma obra de arte de entrega à cultura, aos livros, à música e a todas as formas da beleza. Repetindo o gesto de seu pai ao longo de toda sua existência, Steiner eletrizou plateias, alunos e leitores para que vivessem o amor que viveu pelos livros, para que com eles tivessem o seu mesmo prazer, e assimilando-os como um alimento sagrado. Ninguém mais soube fazer da leitura uma cerimônia transcendente, invocando a presença real do sentido da vida em cada palavra lida. Alguém, depois dele, será capaz de celebrar esse mágico e urgente ritual?*EDUARDO WOLF É DOUTOR EM FILOSOFIA PELA USP E PROFESSOR DO LABORATÓRIO DE POLÍTICA, MÍDIA E COMPORTAMENTO DA PUC-SP/FUNDASP. É EDITOR DO ‘ESTADO DA ARTE’’

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