Como impedir a megabolha

Para cinco especialistas no ganha-e-perde da economia global, é hora de agir com firmeza. Mas isso só vai acontecer com o recrudescimento da crise

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Por Redação
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Em matéria de infortúnios e revezes, a economia americana bem que poderia se solidarizar com o banqueiro Daniel Dantas, alvo da tumultuada operação Satiagraha, da Polícia Federal. Os últimos dias foram de poucos sorrisos (e muita palpitação) no Federal Reserve, o banco central americano, no governo Bush e especialmente em Wall Street. Por trás de explicações pontuais sobre as atuais dificuldades econômicas dos Estados Unidos, existe um só medo: a quebradeira do sistema financeiro mais poderoso do mundo. A "coisa" - seria crise, recessão, desaceleração? - vem mostrando a carranca nas últimas semanas, principalmente a partir da notícia de que as duas maiores agências hipotecárias do setor imobiliário, Freddie Mac e Fannie Mae, estão à beira da insolvência. Em seguida, rumores parecidos cercaram o Indymac Bank e hoje pairam sobre o Lehman Brothers. Os estragos não ficam por aí: entre uma declaração oficial e outra, soube-se que há pelo menos 90 bancos sendo monitorados pela Federal Deposit Insurance Corporation, cuja cúpula jura que os depósitos bancários de até US$ 100 mil estão garantidos pelo governo. Bush, numa coletiva na Casa Branca, declarou: "O sistema é sólido". Ben Bernank, à frente do Fed, liquefez as certezas do presidente: "As dificuldades são grandes. Têm a ver com a alta do preço da energia e das commodities, ambas fora de controle". Bush anunciou um plano do governo para salvar os bancos em apuros. Wall Street não reagiu ao antídoto, ao contrário do que fez William Pole, ex-presidente do Fed: "Mas esse plano significa estatizar as empresas". Coroando a maré ruim, a inflação americana para junho deste mês é 5% superior à marca verificada em junho de 2007. Convocados pela Prospect Magazine, um grupo de experts em economia e mercado financeiro debate o momento atual e tenta arriscar palpites para o futuro, num cenário cheio de incertezas. A seguir, os principais trechos dessa conversa coordenada por Jonathan Ford (editor da Prospect) com o investidor George Soros, chairman do Soros Fund Management, Anatole Kaletsky, economista e colunista do londrino The Times, Martin Wolf, analista do Financial Times, Mark Hannam, ex-executivo do Citibank e John Gieve, diretor do Banco da Inglaterra. Jonathan Ford: Quero começar perguntando em que pé estamos na crise. George Soros, você disse que esta é a pior crise que tivemos em 60 anos. Presumivelmente, acredita que o pior ainda está por vir? George Soros: Penso que o efeito sobre a economia real ainda não foi sentido. As medidas tomadas pelas autoridades não trarão a recuperação. Há quatro razões para isso. Primeiro, a queda nos preços dos imóveis nos Estados Unidos ainda está na metade do caminho e na Grã-Bretanha ela mal começou. Segundo, os consumidores foram lentos em ajustar seus hábitos de consumo, mas isso está prestes a acontecer. Terceiro, o sistema financeiro está seriamente abalado, e apesar do tremendo sucesso dos bancos para levantar mais capital, eles reduzirão seus empréstimos e isso repercutirá nos gastos de capital e na atividade empresarial. Por último, e mais importante, existe uma ameaça de inflação ao mesmo tempo em que há uma desaceleração. O aumento dos preços da energia e dos alimentos fará a desaceleração virar recessão. Anatole Kaletsky: Concordo com George em que a ameaça da inflação é potencialmente o novo fator mais alarmante nesta crise, mas discordaria dos outros três pontos. O pior já passou na economia real nos Estados Unidos, embora ainda não na Grã-Bretanha e na Europa. Os preços dos imóveis nos EUA não podem cair muito mais, e os gastos de consumo se sustentarão. Apesar de ainda haver muitos trilhões de dólares de gastos de consumo para sair do sistema, o impacto poderá se distribuir confortavelmente por muitos anos. E apesar de o sistema financeiro ter sido abalado, as baixas contábeis de bancos - nos Estados Unidos pelo menos - já foram além do plausível em termos de prejuízos prováveis. Há um problema que ainda não se manifestou: os bancos continentais europeus, que não reconheceram os prejuízos na mesma extensão. John Gieve: Estamos atravessando o primeiro choque agudo de liquidez no sistema bancário, e embora ainda persistam muitos riscos, esperamos que a confiança retorne gradualmente. Mas o fim dessa fase não significa o fim da desaceleração. Na Grã-Bretanha, onde as coisas até agora se sustentaram, o que começou como uma queda muito acentuada do mercado de imóveis comerciais agora está se espalhando para o mercado de imóveis residenciais, e nós esperamos uma desaceleração da atividade econômica pelo restante do ano. Neste sentido, o pior, decididamente não passou. Martin Wolf: O processo todo de ajuste ao risco ainda não acabou. Os spreads do crédito nos mercados interbancários, mercados de commercial papers etc. continuam grandes, e isso deixa os bancos relutantes em emprestar uns aos outros. Estou mais próximo de George do que de Anatole sobre o mercado imobiliário americano. E pensando no mundo como um todo, o choque americano se combina com dois outros: inflação e preços da energia, particularmente para a Europa e os países emergentes da Ásia. É difícil imaginar que isso não terá um efeito negativo importante. A valorização do euro está transferindo o déficit em conta corrente americano para a Europa. Isso está causando grandes tensões na zona do euro em termos de diferenças de competitividade entre a Alemanha e o sul da Europa. Por outro lado, em razão dos temores inflacionários, o Banco Central Europeu não fará nada para ajudar a Europa numa situação mundial difícil. Isso se traduzirá numa desaceleração maior do que a que agora esperamos. Ford: Acho que devemos nos concentrar agora no aspecto regulatório. John, gostaria de convocá-lo como um representante das "autoridades" e perguntar se vocês são culpados por permitir que essa bolha tenha inflado de tal forma que agora nos preocupa a possibilidade de muitos anos de recessão econômica. Gieve: Considerando a situação em que estávamos nesta época do ano passado, acho que a maioria das pessoas, incluindo o Banco da Inglaterra (o banco central da Grã-Bretanha), dizia que uma correção era inevitável. Àquela altura, porém, não sabíamos quanto ela seria grande e dolorosa. Agora podemos ver que boa parte do aumento dos preços dos ativos foi mais cíclica do que a maioria das pessoas pensava. Isso coloca questões para a política monetária e também para a regulação; em particular, se nossos regimes regulatórios são suficientemente contracíclicos - se os bancos deveriam ser compelidos a reservar mais nos tempos bons para poder absorver os prejuízos nos ruins. No contexto monetário, o debate é sobre que peso dar aos preços dos ativos, e no contexto regulatório, o que se pode fazer para achatar o topo do ciclo? Wolf: Considero uma vergonha pessoas que ganham quantias enormes de dinheiro nos mercados dizerem: "A culpa é dos reguladores que não nos impediram de fazê-lo". Mas devemos considerar as autoridades também. E há duas linhas principais. Uma é a seguinte: foi erro de Greenspan (Alan Greenspan, ex-presidente do Fed) - a política monetária ficou frouxa demais por muito tempo, particularmente depois do estouro da última bolha, e isso criou as condições para a seguinte; e a segunda é que o regime regulatório não foi suficientemente duro. Existe um pouco de verdade em ambas, mas elas são exageradas. Não posso acreditar que exista alguma política monetária capaz de impedir as bolhas nos preços dos imóveis que vimos. Mark Hannam: Nos últimos anos, bancos centrais e autoridades reguladoras tiveram dois trabalhos. Um foi lidar com a política monetária, o outro com a estabilidade financeira. A nova estrutura do Banco da Inglaterra reflete essa dupla responsabilidade. Até recentemente, parecia que o lado da política monetária havia sido espetacularmente bem-sucedido porque tivemos um longo período de forte crescimento e baixa inflação. Agora, pode-se argumentar que isso só foi possível pela globalização - mão-de-obra barata na Ásia etc. -, mas os bancos centrais - o Banco da Inglaterra, o Banco Central Europeu, o Fed - levaram o crédito por isso. Uma conseqüência é que eles ficaram excessivamente confiantes em seu sucesso e deixaram de cuidar da estabilidade financeira. Soros: Estamos chegando perto do xis do problema. Os reguladores e os participantes do mercado estavam agindo com uma interpretação falsa de como os mercados financeiros operam. Eles trabalharam com o pressuposto de que os mercados tendem ao equilíbrio e os desvios são aleatórios. Essa falsa percepção sobre os mercados financeiros levou à criação de produtos estruturados e tornou esta crise muito maior do que ela teria sido se fosse meramente uma bolha imobiliária americana. Algumas pessoas não compreenderam isso. Ben Bernanke (presidente do Fed), por exemplo, disse que era um problema específico dos empréstimos subprime, o que é errado. Outros, como Paul Volcker (ex-presidente do Fed), compreenderam. Bolhas de ativos são endêmicas. São processos que se realimentam operando quando equívocos iniciais de investidores reforçam uma tendência, e isso leva a uma bolha.Os reguladores precisam aceitar a responsabilidade de impedir que bolhas de ativos fujam de controle. Para isso, não basta regular a oferta monetária. É preciso regular também a disponibilidade de crédito. Os mercados são propensos a extremos de euforia e pânico, portanto é preciso usar requisitos de margens e requisitos de reservas mínimas mais ativamente e variá-los conforme as condições do mercado. Essa é a principal lição. Ford: Como fazer os bancos gerirem mais cautelosamente seu capital? Gieve: Em teoria, você pode impor um mecanismo de ajuste automático, ou pode ter um mecanismo mais arbitrário em que os bancos sejam compelidos a manter mais fundos líquidos ou reter mais capital em momentos em que as autoridades julgarem que os preços dos ativos estão subindo muito depressa. Isso obviamente envolveria o banco central, além dos reguladores. Eu não tenho uma resposta acabada, ninguém tem, mas uma lição dessa desaceleração é que precisamos de novas ferramentas regulatórias. Wolf: Acredito que exista algo de realmente muito problemático na maneira como temos pensado em mercados financeiros livres e como eles são regulados. Os reguladores precisam começar a pensar que, se deixarmos esses sujeitos fazerem o que quiserem, poderemos ter de enfrentar grandes problemas. Isso não significa, é claro, que queiramos fechar os mercados financeiros e ter capital alocado pelo governo. Significa considerar muitas coisas, de menos requisitos de capital pró-cíclico a incentivos, a requisitos de liquidez, a mais regulamentação de produtos vendidos aos consumidores - os empréstimos hipotecários que apareceram nos EUA foram simplesmente criminosos. Mas também precisamos compreender que não vamos eliminar completamente o perigo. Podemos reduzi-lo com vários mecanismos, mas estamos lidando com pessoas brilhantes quando se trata de contornar regulamentos - então podemos regular bancos, mas acabamos com os fundos hedge e assim por diante. Além disso, mesmo que tivéssemos um único regulador global, teríamos muitos países seguindo políticas diferentes, algumas delas contraditórias. Ford: Um mecanismo regulatório é os participantes no sistema sofrerem quando as coisas dão errado. Será que os velhacos sofreram o suficiente para serem dissuadidos de novas infrações? Kaletsky: Bem, os acionistas do Citibank e do Bear Stearns foram punidos, mas não foram eles que tomaram as decisões. Quem tomou as decisões foram os diretores. Soros: Por que não chutá-los? Kaletsky: Eu ia sugerir algo quase tão radical. Os presidentes do Citicorp, do Merrill Lynch e do Bear Stearns deveriam ficar na mesma situação que alguém que provoca a bancarrota de uma companhia. Deveriam ter de empenhar uma parte significativa de sua fortuna também. Hannam: Será realmente justo que alguém que trabalhe no setor bancário tenha alguma responsabilidade que dure por cinco ou dez anos em caso de algo dar errado, mesmo que possa não ter tido nenhum papel direto? Isso simplesmente não encorajaria os mais espertos a saírem do setor bancário e irem para os fundos hedge ou o private equity? Isso já começou a acontecer. Se as pessoas pisam na bola, elas devem ser demitidas sem direito a bônus, mas isso deve se aplicar a todos e não apenas a certas partes do mercado. Ford: Voltando ao cenário maior. O que acontecerá ao setor financeiro na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos em conseqüência de tudo isso? Ele encolherá? Deverá encolher? Existem áreas de negócios que não deveriam se recuperar porque eram fundamental instáveis e insatisfatórias? Soros: Deve encolher. Ele realmente inchou demais. O tamanho do setor financeiro é desproporcional ao do restante da economia. Ele vem crescendo exageradamente por um longo período, terminando nessa superbolha dos últimos 25 anos. Acho que isso é o fim de uma era. Kaletsky: Não posso resistir a adotar um ponto de vista contrário. O sistema financeiro está sendo testado. Se esta crise continuar se agravando e a economia real entrar numa recessão prolongada, então isso será um ponto de virada e o sistema financeiro indubitavelmente encolherá. Ainda existe porém uma possibilidade de que o sistema financeiro sobreviva ao teste. Se isso acontecer, a analogia apropriada seria não com 1929 ou mesmo 1973, mas com o que aconteceu no fim dos anos 1990 com o Long Term Capital Management, cujo colapso foi seguido por uma bolha ainda maior. Acho que eventualmente haverá uma bolha que estoure totalmente o sistema financeiro, mas podemos não estar nisso ainda. Não tenho visto muitos gestores de fundos hedge dirigindo táxis. E George, você ganhou muito dinheiro em 2007. Soros: De fato, ganhei. E se passarmos por tudo isso sem um escorregão você descobrirá que os fundos de private equity substituirão os bancos de investimento como a força dominante na economia, porque são eles que estão comprando os ativos agora. Wolf: Não há dúvida de que existem oportunidades enormes para o setor financeiro num sentido amplo, porque mesmo se vocês acreditarem, como eu, que ele esteja superdimensionado na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, está subdimensionado em muitas partes do mundo. Em partes da Europa continental e certamente nas economias emergentes, um sistema financeiro maior e mais eficiente seria um grande plus. Os retornos marginais de capital na China são provavelmente nulos, e se fossem maiores do que isso eles não teriam de poupar 55% do Produto Interno Bruto. O segundo ponto é que o setor financeiro não enriquece fora do restante do setor financeiro. Ele ganha dinheiro servindo à economia em geral, e isso está ligado à escala dos ativos do setor, que está ligada, por sua vez, ao estoque de dívida na economia. Olhando para os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, podemos ter atingindo pelo menos um limite local na escala do endividamento. Se o estoque de dívida cresce com relativa lentidão, as oportunidades para o setor como um todo nesses países não aumentarão - tivemos um crescimento maciço na alavancagem nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha nos últimos 25 anos, e é impossível imaginar o mesmo crescimento nos próximos 25. Os reguladores deveriam começar a ser menos reativos. Isso vai depender da gravidade desta crise, e da força do lobby contra restrições propostas. Essas questões serão elaboradas na política dos próximos dois anos.

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