Como o trompetista Wynton Marsalis uniu o jazz à música clássica

Músico está na trilha sonora do filme 'Bolden', que narra a vida do também trompetista Buddy Bolden

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

“Chamo este de o Brahms de meus vinhos”, anunciou o anfitrião de um jantar em torno de Johannes Brahms (1833-1897) após um concerto em Viena, tentando homenageá-lo. “Então”, disse o compositor, “vamos ver se encontramos uma garrafa de Bach”. Esta é uma das muitas tiradas que nos ajudam a compreender melhor como funcionava a cabeça do último dos geniais três “Bs” da música alemã, ao lado de Bach e Beethoven. Esta exagerada e até maldosa autocrítica e a consciência de sua posição na história da música fazem de Brahms o primeiro compositor que teve de lutar com uma tradição e um passado musicais gloriosos para se impor como criador original. Escreveu suas primeiras obras na década de 40 do século 19, no momento em que se fixava na opinião pública europeia o cânone dos grandes compositores do passado e começava-se a chamar de obras-primas apenas as que resistiram ao teste do tempo. Pela primeira vez a vida musical deixava de ser feita exclusivamente com obras novas a cada dia.

O ator Gary Carr interpreta o trompetista Buddy Bolden no filme 'Bolden' Foto: Abramorama

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O raciocínio só se exacerbou se o transpusermos para o nosso século 21, com toda a história da música disponível a um toque no smartphone. Mal comparando, o jazz, que nasceu há pouco mais de um século, encontrou seu Brahms na figura maravilhosa do trompetista Wynton Marsalis, nascido no berço do gênero, New Orleans, em 1961. Como o autor do Réquiem Alemão, Marsalis foi o primeiro músico de jazz a olhar para o passado e enxergar uma fileira majestosa de gênios e obras-primas. E, se Brahms colecionava manuscritos de partituras e promoveu a edição da música de seus antecessores, numa atitude de “pesquisador”, o mesmo vem fazendo Marsalis. Logo depois de deixar os Jazz Messengers de Art Blakey, em 1981, quando assumiu-se como líder de grupo pela primeira vez; e na sequência, percorrendo em dezenas de gravações a história do jazz. Por último, institucionalizando em definitivo o panteão jazzístico e construindo uma organização que não só divulga e viabiliza sua música, mas principalmente consolidou o jazz como “a” música norte-americana por excelência, com direito a ser objeto de departamentos autônomos nas universidades. E, joia da coroa, o Jalco (Jazz at Lincoln Center Orchestra) é mais do que uma big band de 16 músicos extraordinários: abastece, a partir de Nova York, o país inteiro com partituras, métodos e impulsiona o ensino do jazz nas escolas. Sim, ensino. Replica isso em todo lugar no qual se apresenta. 

Apesar de já ter atuado no Brasil anteriormente com a Jalco, ele fez questão de acentuar que sua vinda em junho passado a São Paulo foi a primeira nos moldes em que gosta de atuar. E o que isso quer dizer? Simples. Marsalis e seus músicos literalmente promoveram uma “ocupação” de quinze dias, na segunda quinzena de junho passado, em oito unidades do Sesc, com onze shows, dois ensaios abertos ao público, duas conferências, duas mesas redondas e quatro workshops (oficinas para músicos). Os temas não foram só musicais, houve até aulas de gestão de grupos musicais.

E o que Brahms tem a ver com Marsalis? Tudo. Como o compositor no século 19, o trompetista também é rotineiramente acusado de passadismo, conservadorismo, retrô, etc. Xingamentos que começaram com Miles Davis (ele faz agora o que eu já fiz décadas atrás) e traduzem um equívoco fundamental. Marsalis quer ser visto antes de tudo como um professor, alguém que preserva o jazz como arte e o difunde com talento e disciplina, a fim de perpetuá-lo. Brahms também conviveu com Richard Wagner – e perto do autor da tetralogia do Anel do Nibelungo de fato ele parecia retrô e conservador. 

Acontece que a vida musical, ontem como hoje e no futuro, necessita sempre dos dois tipos de criadores musicais: os que conservam, aperfeiçoam e mantêm viva a música; e os que, como Wagner e Miles, revolucionam-se a cada novo passo. E esta convivência precisa desenvolver-se em clima de tolerância e respeito à diversidade. Está certo, estes são artigos em falta em nossos tempos. Porém, não é possível nem desejável que a vida musical – seja a do jazz e das músicas instrumentais, seja da música clássica – reproduza as fraturas embrutecedoras da vida política que nos assola atualmente.

A “ocupação” Marsalis de junho passado certamente dará muitos frutos, que se concretizarão com novos estudantes de música, no sentido amplo. Até porque o trompetista jamais limitou-se à prática do jazz ortodoxo. Gravou praticamente todo o repertório barroco e clássico para seu instrumento. E compõe bastante, de novos temas jazzísticos a concertos e sinfonias que respeitam estruturalmente as formas e gêneros clássicos mas aqui e ali são embebidos de swing. 

Em 1983, quando gravou o Concerto para Trompete e Orquestra em mi bemol maior Hob.VIIe.1, de Joseph Haydn (1732-1809) com a Orquestra Filarmônica Nacional, regida por Raymond Leppard, Miles Davis explodiu: “Eles fizeram Wynton tocar uma música europeia morta. Se continuar assim, vão acabar com ele” (em sua Autobiografia). Ora, um músico completo como Marsalis tinha uma consciência histórica que Miles desprezava. Este concerto, por exemplo, o derradeiro de Haydn, foi composto em 1796 a pedido de um trompetista vienense que foi o primeiro a tocar um inédito trompete de chaves capaz de entoar duas oitavas cromáticas. Naquele momento, uma revolução.

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E quando ganhou nove Grammies nas duas categorias – jazz e clássico -- , Wynton deixava claro que sua concepção da música era inclusiva o suficiente para não se limitar às suas raízes jazzísticas. A consequência natural foi que ele gravou o grande repertório barroco e clássico para trompete e orquestra, ombreando-se aos grandes, como o francês Maurice André.

É injusto depositar todas as fichas elogiosas no escaninho educacional de Marsalis. Ele também é compositor de mão cheia. E inclusivo, claro. Enquanto por aqui encantava o público em geral, os músicos profissionais e os estudantes de música que acompanharam a maratona paulistana da Jalco em junho passado, ele tinha três CDs simultaneamente lançados no mercado internacional nas plataformas de streaming e em formato físico: uma trilha sonora e três composições sinfônico-concertantes nos dois restantes.

O toque de gênio aparece em todas elas. Na trilha para Bolden, longa de 2019 dirigido por Dan Pritzker e estreado em maio passado nos Estados Unidos, um dos dezoito temas compostos, arranjados e interpretados por Wynton intitula-se Timelessness, intemporalidade, ou atemporal. Aqui ele toca na mesma música o cornet que celebrizou Buddy Bolden (1877-1931) e o trompete que fez de Louis Armstrong o primeiro grande solista do jazz. De Bolden e seu cornet que misturava blues, ragtime e gospel, famoso em New Orleans entre 1900 e 1907, nada existe gravado. Trilha perfeita para o filme que começa mostrando-o num sanatório psiquiátrico em 1931 ouvindo o trompete do Satchmo no rádio.

A mesma gravadora, Blue Engine, lançou em julho só em edição digital Swing Symphony, de Marsalis, com a Jalco e a Orquestra Sinfônica de St. Louis, regida por David Robertson: 62 minutos distribuídos em sete movimentos revisitam saborosamente, com engenho e muita arte, a evolução da música norte-americana, com muitas alusões e evocações das criações mais swingadas de nomes como Aaron Copland e sobretudo Leonard Bernstein. Possivelmente, porém, o guru mais próximo desta aventura sinfônica de Marsalis seja mesmo Duke Ellington (1899-1974), o maior ídolo do trompetista. Os títulos falam por si: St. Louis to New Orleans (com direito ao jungle style de Ellington); All-American Pep (fina orquestração de cordas); Midwestern Moods (anos 1930, saxofones e um solo de trompete em destaque); Manhattan to LA (tema velocíssimo bebopiano) – Modern Modes and the Midnight Moean (delicioso contraponto inicial) – Think-Space:Theory (a escrita orquestral mais refinada da obra) – e o trompete atingindo notas estratosféricas no movimento final: The Low Down (Up and High).

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A cereja fica com o CD mais clássico do pacote: o encorpado concerto para violino e orquestra que Wynton compôs especialmente para a violinista escocesa Nicola Benedetti (de pais italianos), acompanhada pela Orquestra da Filadélfia, regida por Cristian Macelaru, em quatro movimentos e mais de 40 minutos de duração. Linda, leve e solta a Rapsódia inicial, que termina numa dança graciosa. No rondó, o violino evoca os pássaros tão bem retratados por Antonio Vivaldi, só que num ambiente harmônico muito mais sofisticado que logo transforma-se numa dança burlesca. O terceiro, Blues, é o momento mais Copland-Bernstein do concerto. E o finale intitulado Hootenanny já começa frenético com uma buliçosa dança celta. Completam o CD cinco deliciosas “fiddle dances” para violino solo que parecem saídas das entranhas da chamada América profunda e dos tempos da colonização, quando imigrantes levaram seus violinos e provocaram a aculturação dos superclássicos instrumentos na música country.

E a quem se pergunte por que um músico de jazz se põe a compor concertos à europeia, a resposta é simples: por que não? Wynton praticou uma concepção inclusiva da música desde meninote. Aos 8 anos tocava no estilo New Orleans na Igreja Batista ao lado do banjo de Danny Barker; e aos 14 tocou com a Filarmônica de New Orleans. Cerquinhas jamais existiram para ele.

5 discos essenciais de Wynton Marsalis

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1. ‘Bolden’ (2019) - Trilha do filme traz ragtimes do rival de Louis Armstrong  2. ‘Swing Symphony’ (2018) - Obra sinfônica de Marsalis com a Jalco  3. ‘WM/Clapton Plays the Blues’ (2011) - Clássicos do blues com Eric Clapton 4. ‘Blue Interlude’ (1992) - Marsalis e seu septeto tocam peças suas  5. ‘Black Codes’ (1985) - Músico ganhou dois Grammy com ele, o de solista e performance instrumental*JOÃO MARCOS COELHO É CRÍTICO MUSICAL E AUTOR DE ‘PENSANDO AS MÚSICAS NO SÉCULO 21’ (EDITORA PERSPECTIVA)

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