Como os livros de Proust foram recebidos no Brasil há 70 anos?

Traduzido por Mário Quintana, 'O Caminho de Swann' deu origem a uma febre no País

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Por Rodrigo Simon
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“Acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”.

Retrato de Marcel Proust pelo pintor Gabriele Donelli Foto: Gabriele Donelli

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Em tempos de internet, é grande a chance de que mesmo quem nunca leu uma página sequer escrita por Marcel Proust conheça essa que é uma das mais famosas passagens da literatura universal: a madalena que, embebida no chá em um dia de inverno, permite ao narrador de Em Busca do Tempo Perdido estabelecer uma experiência profunda com o passado.

Mas se hoje a cena responsável por desencadear um dos temas centrais nos sete volumes de À la Recherche du Temps Perdu está disponível aos leitores brasileiros em versões que vão do digital ao mangá, há pouco mais de meio século Proust por aqui oscilava entre o desconhecimento, a incompreensão e o desprezo.

Isso começou a mudar há exatos 70 anos, quando em outubro de 1948 chegou às livrarias, a cargo do poeta Mário Quintana, a primeira tradução brasileira de Du Côte de Chez Swann. A iniciativa da então gaúcha Editora Globo (comprada em 1986 pelo Grupo Globo carioca) foi responsável por lançar no Brasil uma verdadeira febre proustiana.

Como apontou Walter Benjamin, ele próprio responsável por verter Proust para o alemão, “as traduções que são mais que simples intermediárias só surgem quando uma obra atingiu a época de sua glória”. No entanto, até que "Longtemps je me suis couché de bonne heure" se transformasse em “Durante muito tempo, costumava deitar-me cedo”, a literatura do modernista francês, no Brasil, esteve restrita a um reduzidíssimo grupo de intelectuais, muitos deles mais preocupados em demonstrar estarem atentos ao que se passava na Europa que verdadeiramente entusiasmados com as inovações trazidas pela literatura proustiana.

É provável que Jorge de Lima tenha sido o primeiro a ler a obra no Brasil. Em 1919, vivendo na pequena Maceió, cuja população, à época, mal passava dos 70 mil habitantes, o então jovem médico conseguiu um exemplar de À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleur com os aviadores franceses que utilizavam a base aérea da capital alagoana como ponto de escala nas viagens para a América Latina. Por outro lado, há quem garanta que Proust teria chegado antes a Minas ou ao Rio, mas o fato é que o primeiro registro de um texto sobre Proust no Brasil pertence a Graça Aranha. Em 1925, em um pequena análise de apenas 26 linhas anotada em seu Espírito Moderno, o escritor foi impiedoso com a novidade. “Proust não nos rejuvenesce. Arte da tradição, que termina em decadência. O poderoso dom de representação limita-se a fragmentar a vida. É uma decomposição do universo à qual falta a recomposição estética.”

Dois anos depois, Tristão de Athayde seria mais generoso. Se na primeira série de seus Estudos analisou a importância da música em Proust e Stendhal, na segunda lembrou que, no dia seguinte à morte do conterrâneo, Rosny declarou: “Proust, c’est du nouveau”. Para o Brasil das primeiras décadas do século 20, no entanto, Proust era novo demais. A palavra de ordem modernista era o repúdio aos modelos europeus. Assim, por mais que, como escreveu a professora emérita da USP Walnice Nogueira Galvão, “durante muito tempo, crítico brasileiro que se prezasse frequentava Proust”, a verdade é que não havia a menor compatibilidade entre a introspecção dos romances proustianos e a efervescência nacionalista iniciada na Semana de Arte Moderna de 22. 

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Os desencontros não ficaram restritos à temática nacional, como testemunhou Jayme Adour da Câmara, que com Oswald de Andrade e Raul Bopp comandou a segunda “dentição” da Revista de Antropofagia.

“Vivíamos um angustioso após-guerra e naturalmente a literatura mais em voga era constituída pelos depoimentos de escritores e ex-combatentes ou empenhados na reconstrução social e econômica do mundo.”

Em seu Depoimento sobre Proust, o autor de Oropa, França e Bahia lembrou também que os desencontros entre Proust e os brasileiros não ficaram restritos à temática. “Muitos se apavoraram com o estilo de Proust e com a composição cerrada de seus livros. Outros ainda se embaraçavam nos períodos intermináveis e acidentados do escritor”.

A bem da verdade, as primeiras recepções no Brasil não foram muito diferentes do que se passou na França. Segundo Sérgio Milliet, “ninguém foi mais atacado, ridicularizado, insultado, incompreendido”.

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Antes de ter seu lançamento custeado pelo próprio escritor, o manuscrito do primeiro volume foi rejeitado por outras quatro editoras, uma delas, como se sabe, por recomendação a André Gide.

Em carta a Louis de Robert, amigo de Proust, uma das editoras justificou a recusa: “Custa a crer que se gastem trinta páginas só para descrever alguém a remexer-se na cama, sem poder conciliar o sono.” Uma vez lançado, os ataques foram chefiadas pelo crítico André Germain, para quem Du Côté de Chez Swann era uma espécie de “livro sandwich”, 30 páginas imorais entre duas fatias modorrentas de vulgaridade.

Em sua estreia como colunista do Letras e Artes, suplemento do periódico A Manhã, o escritor português João Gaspar Simões, primeiro editor de Fernando Pessoa, lembrou que um dos principais jornais lusitanos, ao ser informado da morte do escritor, em 1922, noticiou ter falecido Marcel Prévost. Informada do equívoco, a gazeta corrigiu o erro anunciando que quem falecera, “e ainda bem”, não fora o grande Prévost, mas um obscuro escritor de nome Marcel Proust – indiferente ao assunto, Prévost seguiria vivo até 1941.

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No Brasil, segundo Brito Broca, passada a curiosidade inicial, de “1930 a 1940, houve um refluxo no interesse por Marcel Proust, e isso deve ligar-se ao apogeu do neonaturalismo nordestino, que dominou nessa década, apesar das reações dos romancistas introspectivos situados geralmente no sul”.

Como se sabe, por aqui o modernismo só daria uma guinada introspectiva em sua terceira fase, a partir de 1945, o que coincide justamente com a primeira tradução. Segundo Tristão de Athayde, é aí que “Brasil descobre enfim a importância dessa obra e dessa personalidade literária inconfundível”.

O lançamento de No Caminho de Swann não ganhou as manchetes, mas logo virou tema prioritário nos jornais, em textos dos grandes intelectuais da época. 

Se, naquele final de 1948, era possível literalmente contar nos dedos os que tinham tratado das questões proustianas – Graça Aranha, Tristão de Athayde, Jorge de Lima, Octacílio Alecrim e Ruy Coelho –, nos doze meses seguintes ao lançamento foram mais de trinta artigos, de Sérgio Buarque de Holanda, no Diário de Notícias carioca, passando por Rachel de Queiroz, em O Cruzeiro, até Maria de Lourdes Teixeira, no Diário de Pernambuco. 

No Rio de Janeiro, Saldanha Coelho lançou uma publicação inspirada na Revue Blanche, publicação francesa que tinha contado com Proust entre seus colaboradores. A Revista Branca brasileira levou às livrarias a edição especial “Proustiana Brasileira”, reunindo textos de, entre outros, Otto Maria Carpeaux, Dinah Silveira de Queiroz e Lúcia Miguel Pereira.

Disponível ao leitor não versado no francês, como ressaltou Alcântara Silveira em 5 de novembro no Estado, as vendas de No Caminho de Swann foram um sucesso. Uma semana após o lançamento, o Letras e Artes do jornal A Manhã relatava que era o segundo livro mais vendido em São Paulo, atrás apenas de Presença de Anita, de Mário Donato.

Seis meses depois, em junho de 1949, O Jornal noticiava que três mil exemplares tinham sido vendidos em dois meses. “Proust está, por assim dizer, na moda”, noticiou o periódico dos Diários Associados.

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Em entrevista concedida à escritora Edla van Steen em 1979, Mário Quintana contou ter partido dele o pedido à Editora Globo, onde trabalhava há mais de dez anos, para traduzir Du Côté de Chez Swann. “Traduzi Proust por amor à dificuldade da tradução, por medo que caísse em outras mãos”. 

Responsável também pelos três volumes seguintes (A Sombra das Raparigas em Flor, em 1951, O Caminho de Guermantes, 1953, e Sodoma e Gomorra, 1954), o poeta reuniu muito mais elogios que críticas ao seu trabalho. Isso, no entanto, não impediu que se demitisse, descontente por não ter sido contemplado com um aumento salarial. Segundo o poeta, a editora considerava que sua tradução andava em ritmo muito lento.

A coleção foi então completada com traduções de Manuel Bandeira e Lourdes de Souza Alencar (A Prisioneira, 1954), Carlos Drummond de Andrade (A Fugitiva, 1956) e Lúcia Miguel Pereira (O Tempo Redescoberto, 1956).

Revisada pela primeira vez em 1988, a nova edição teve 23 reimpressões. Em 2006, ganhou prefácio, cronologia, notas e resumo assinados pelo professor Guilherme Ignácio da Silva, que, junto com pesquisadores franceses e japoneses, trabalhou na transcrição de alguns dos 75 cadernos de manuscritos deixados por Proust. 

A “Recherche”, como dizem os franceses, teve apenas uma outra única tradução no Brasil. Em 1993, a Ediouro lançou, também em sete volumes, o trabalho realizado pelo poeta e crítico literário Fernando Py.

Em 2011 foi anunciado que o jornalista Mário Sérgio Conti iniciara uma nova tradução. A previsão era que o primeiro livro fosse publicado pela Companhia das Letras ainda no segundo semestre de 2012.

Conti conta que ainda trabalha na tradução de Proust. “Muito mais lentamente do que gostaria. Tanto que ainda estou no primeiro livro. Devo publicá-lo pela Companhia da Letras. Mas não há data marcada”.

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Como disse Samuel Beckett, que tomou para si a tarefa de traduzir os próprios livros: “A equação proustiana nunca é simples.” *Rodrigo Simon é jornalista, mestre em letras pela USP e doutorando em teoria e história literária pela Unicamp

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